(na revista Época, que está nas bancas)
Marisa Letícia Lula da Silva, a ex-primeira-dama do Brasil, morreu às 18h57 desta sexta-feira (3), aos 66 anos. A mulher do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva estava internada no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, desde o dia 24 de janeiro. Na quinta-feira, 2 de fevereiro, o exame transcraniano identificou “ausência de fluxo cerebral”. Diante da notícia, o próprio ex-presidente Lula se encarregou dos procedimentos para autorizar a doação de órgãos. No Facebook, ele agradeceu as “manifestações de carinho e solidariedade” recebidas. As etapas do protocolo para a confirmação da morte encefálica foram finalizadas nesta sexta-feira.
Marisa Letícia estava internada, sob os cuidados do cardiologista Roberto Kalil Filho, amigo e médico da família, após ser vítima de um grave acidente vascular cerebral (AVC) desencadeado por um aneurisma, uma dilatação anormal de uma artéria. Ao chegar ao hospital, encontrava-se consciente, mas um pouco confusa. Sua pressão, horas antes, havia batido 18 por 12. Foi sedada e não acordou mais.
Havia alguns anos que Marisa sabia da existência do aneurisma. Como era pequeno, optou – com a concordância dos médicos – por não operá-lo. Nos últimos meses, o aneurisma cresceu até atingir pouco menos de 1 centímetro. A consequência foi o sangramento discreto no lado esquerdo do cérebro.
HISTÓRIA
Em seus primeiros anos de casada, Marisa Letícia não simpatizava com a política. Fartava-se com as centenas de telefonemas diários de gente atrás do marido, na época uma liderança em ascendência dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo. Aos poucos, porém, Marisa não só se adaptou àquela atmosfera, como acabou se tornando parte ativa dela. Em 10 de fevereiro de 1980, nasciam o Partido dos Trabalhadores (PT) e, pelas mãos de Marisa, a primeira bandeira da legenda recém-criada. Num recorte de tecido vermelho trazido da Itália, Marisa costurou uma estrela branca e sacramentou o que se tornaria a marca da sigla. “Foi assim que começou o PT”, disse mais tarde, em 2002, pouco antes de se tornar primeira-dama do Brasil.
CIVILIDADE
Descendente de imigrantes italianos, décima de uma família de 11 filhos, Marisa teve uma infância simples num sítio na zona rural de São Bernardo. Em 1970, aos 19 anos, Marisa se casou pela primeira vez. Engravidou na lua de mel e ficou viúva em seguida, quando o marido, o taxista Marcos Cláudio dos Santos, foi assassinado durante um assalto. Três anos depois, Marisa conheceu Lula no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo quando tentava receber o pecúlio do marido. Fascinado, Lula orientou funcionários a avisá-lo quando a “viuvinha” chegasse por ali. Dizia a ela que também era viúvo. No livro A história de Lula: o filho do Brasil, a jornalista e escritora Denise Paraná conta que Lula deixou cair uma carteirinha com dados pessoais para provar o que dizia. “Mas eu não estou querendo saber se você é viúvo ou não. Estou querendo só que você bata o carimbo para eu receber”, disse Marisa. Lula insistiu. Certa noite, foi buscá-la de surpresa para sair e a encontrou com um namorado. Dispensou o rapaz e comunicou à mãe de Marisa que, a partir daquele momento, era ele o par de sua filha. Lula dizia que se apaixonara à primeira vista pela “galega”. Casaram-se seis meses depois e tiveram Fábio, Sandro e Luís Cláudio.
Desde que coseu a primeira bandeira do PT, Marisa se engajou mais e mais nas atividades políticas. Estampou e vendeu camisetas para conseguir recursos. Numa época em que o feminismo andava adormecido, Marisa organizou uma marcha de mulheres para negociar a liberação dos metalúrgicos. Marisa sempre fugiu do protagonismo, mas cuidava das finanças da família, da logística pessoal e das roupas do ex-presidente. Criticava o desempenho de Lula em entrevistas ou discursos. Pelo círculo íntimo, era tida como o farol de Lula. A conselheira que ele ouvia, que lhe dava segurança.
Marisa foi uma das mais discretas primeiras-damas do Brasil por oito anos. Compartilhou com Lula a vida e a política, e acabou denunciada com ele em uma ação penal. Respondia pelo crime de lavagem de dinheiro por causa da reforma do sítio de Atibaia. Na primeira manifestação pública sobre o estado de saúde da mulher, na segunda-feira, dia 30, Lula disse a simpatizantes que “a pressão e a tensão fazem as pessoas chegar ao ponto que a Marisa chegou”.
Para além da tragédia, a internação de Dona Marisa expôs uma indignidade de conduta. Segundo reportagem do jornal O Globo, uma médica do hospital, identificada como Gabriela Munhoz, compartilhou informações sigilosas sobre o estado de saúde de Marisa em um grupo de WhatsApp. Dizia que Marisa estava no pronto-socorro com diagnóstico de AVC hemorrágico de nível 4 na escala Fisher, considerado dos mais graves. Enfatizava que a paciente estava prestes a ser levada para a Unidade de Terapia Intensiva (UTI). A mensagem foi compartilhada no grupo “MED IX”, da turma de formandos em medicina de 2009 na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Espalhou-se rapidamente e despertou comentários dos mais assombrosos.
Outro médico enviou ao grupo imagens de uma tomografia atribuída a Marisa, com detalhes que, mais tarde, foram confirmados por Gabriela. A tomografia teria vindo de outro grupo, o “PS Engenho 3”, cujo vazamento foi atribuído a um cardiologista. Na quarta-feira, dia 1º, o Hospital Sírio-Libanês informou que Gabriela foi demitida. O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) disse, em nota, que abriu uma sindicância para investigar o vazamento da imagem.
A dignidade que faltou a alguns médicos sobrou aos políticos. Cercado por uma extensa comitiva, o presidente Michel Temer voou de Brasília a São Paulo na quinta-feira – ouviu gritos de “golpistas”, “assassinos” e “ladrões” na porta do hospital – para prestar solidariedade a Lula. Temer levou o ex-presidente José Sarney e os ministros José Serra e Henrique Meirelles, entre outros. Horas antes, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso também estivera no Sírio. Fernando Henrique envolveu Lula com um abraço fraterno – numa retribuição ao gesto de Lula em 2008, que foi abraçá-lo no velório de sua mulher, Ruth Cardoso. Hoje em lados opostos, os dois políticos foram aliados em grande parte da carreira, desde que o jovem líder sindical Lula apoiou, em 1978, o jovem professor esquerdista numa disputa ao Senado Federal. A imagem comoveu. Em tempos irracionais, provocou um suspiro solitário de civilidade. A política faz adversários, não inimigos. Por causa de Dona Marisa, o Brasil se lembrou disso nesta semana.
(+) Comentário do programa – A morte de Dona Marisa foi objeto de comentários dos mais diversos. Ditos esquerdistas utilizaram a morte da ex-primeira dama para fazer críticas à operação Lava Jato. Pessoas de origens incertas tripudiaram sobre a dor da família e dos correligionários e admiradores da esposa de Lula. Não concordamos com nenhum dos lados. A Lava-Jato lava a alma dos brasileiros decentes. A dor de Lula foi respeitada até por adversários dos mais ferrenhos. (LGLM)