Sob a justificativa de reduzir litígios, pode-se estar incentivando a violação
(Oscar Vilhena Vieira, Professor de direito constitucional da FGV-SP, é doutor pela USP e tem pós-doutorado por Oxford)
Nesta semana teve início a primeira batalha no Supremo Tribunal Federal em torno da reforma trabalhista. A ação proposta pela PGR (Procuradoria-Geral da República) é singela. Resume-se a questionar a constitucionalidade dos dispositivos que impõem ao reclamante derrotado, ainda que beneficiário de Justiça gratuita, arcar com o ônus dos honorários periciais e advocatícios, dentro de determinados limites. Parece um detalhe técnico, mas não é.
O argumento central da Procuradoria é que a criação dessa obrigação impôs um verdadeiro obstáculo para que pessoas mais pobres recorram à Justiça para reivindicar eventuais lesões aos seus direitos trabalhistas. Isso violaria não apenas o direito de acesso à Justiça como o direito à igualdade, uma vez que esse ônus tem um impacto desproporcional sobre litigantes ricos e pobres, no momento em que têm que tomar a decisão de ir ou não ao Judiciário.
Quando um diretor de um banco procura um advogado para acionar o seu ex-empregador, ele é alertado que, se for derrotado, terá que pagar sucumbência. Decide então se vale a pena ou não correr o risco. A situação é bastante distinta quando falamos de uma pessoa pobre, que acaba de perder seu emprego. Para ela, o risco de ter que pagar honorários periciais ou advocatícios da parte contrária, caso perca a ação, pode ser não apenas dissuasório, mas impeditivo do exercício do direito.
Como em casos individuais é muito difícil prever o resultado de uma ação judicial, mesmo que se tenha convicção de que houve violação de um direito, é melhor não correr o risco de ser derrotado e sair do fórum com dívida. É importante destacar que mais de 70% dos trabalhadores brasileiros recebem menos de dois salários mínimos, conforme o IBGE. Logo, são muito pobres.
Os debates se iniciaram com duas posições opostas. Para o relator, criar um ônus àquele que é derrotado, para se atingir a redução da litigiosidade, não fere o princípio da proporcionalidade. Para o voto dissidente, no entanto, o argumento de redução do número de litígios não é suficiente para restringir o direito fundamental de acesso à Justiça. Afinal, qualquer medida que venha a restringir direito só será considerada proporcional se for a menos onerosa possível ao direito que se está restringindo.
Para restringir e punir o litigante oportunista e frívolo basta aplicar a litigância de má-fé. Diferentemente do modelo criado pela reforma trabalhista, a litigância de má-fé penaliza apenas os oportunistas que buscam fraudar o sistema, sem, no entanto, estabelecer ônus desproporcional, de natureza econômica, sobre aqueles que buscam legitimamente o Judiciário.
Infelizmente não se discutiu o fato de que a grande maioria das reclamações trabalhistas não decorre do litígio abusivo, mas sim do descumprimento de obrigações trabalhistas pelo empregador. Ao referendar o desincentivo ao litígio frívolo, tal como proposto pela reforma, reduzindo o risco de o empregador de ser processado, talvez se tenha estabelecido um outro incentivo, esse ainda mais perverso, para que o mau empregador continue se evadindo de suas obrigações.
O mercado de trabalho brasileiro passou por uma ampla transformação desde a adoção da CLT. A globalização, a desindustrialização e o surgimento de novas formas de trabalho exigem constantes adaptações do direito. A jurisprudência vem impondo enormes ajustes ao longo de décadas, muitos dos quais foram incorporados na presente reforma. Tudo isso não justifica, no entanto, criar obstáculos para que os mais pobres reclamem os seus direitos.