Declarações de Bolsonaro sobre a produção cinematográfica fomentada pelo poder público mostram sua inclinação autoritária
Em atordoante hiperatividade verbal recente, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) superou-se na capacidade de produzir disparates.
Não se sabe se em reação ao protagonismo político do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), ou se com o intuito de desviar a atenção de outros temas espinhosos, o fato é que o mandatário deu nos últimos dias demonstrações constrangedoras de superficialidade, preconceito e desprezo pela magnitude do cargo que ocupa.
Entre os vitupérios que Bolsonaro dirigiu a instituições e setores da sociedade, não faltaram ataques a dois alvos preferenciais de sua cruzada obscurantista —a produção cultural e a científica.
No primeiro caso, elegeu-se como alvo o cinema. Aparentemente inconformado com a ideia de que o fomento à atividade contempla obras que contrariam seu gosto e o moralismo primário de grupos que o apoiam, o chefe do Executivo ameaçou extinguir a Agência Nacional de Cinema (Ancine).
Assim procederia, disse, caso não lhe fosse permitido impor um “filtro” para selecionar o conteúdo dos projetos que fariam jus a verbas públicas. O que seria, enfim, tal filtro senão o exercício intolerável e inconstitucional da censura? O presidente foi a um só tempo irresponsável e desrespeitoso ao mencionar como contraexemplo a obra “Bruna Surfistinha”. Em primeiro lugar, porque, como admitiu,nem sequer assistiu ao filme; em segundo, por desconhecer a trajetória exitosa da produção no mercado cinematográfico.
O fato de atividades econômicas contarem com participação de fontes orçamentárias —e elas são inúmeras, da indústria automobilística à construção civil— obviamente não deveria conferir ao Executivo prerrogativas discricionárias sobre os diversos ramos.
No caso da cultura e do entretenimento, em que os bens encerram aspectos imateriais e se inscrevem no território da livre expressão, não é tarefa do governante dispor sobre conteúdos. É preciso, sim, zelar pela transparência e pela eficiência dos mecanismos de apoio, mas em nenhuma hipótese enveredar pelo dirigismo.
Ímpeto análogo demonstrou o presidente ao desacreditar os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) acerca do desmatamento da Amazônia.
Ao acusar a diretoria do órgão de falsear informações a serviço de interesses escusos, Bolsonaro abordou de modo agressivo um tema sobre o qual demonstra não ter nenhum conhecimento.
Trata-se, nos dois casos, de inclinação a um perigoso exercício abusivo do poder. Afinal, o que haveria num Brasil de obras culturais e estatísticas filtradas pelo governo senão um regime autoritário?