No mundo, demanda por leitos vai a 2,4 por 10 mil pessoas; Brasil tem média de 2,1, que cai a 1 na rede pública
(Fernando Canzian, na Folha)
A maioria dos estados brasileiros está despreparada para atender, na rede pública, casos graves de pacientes infectados pelo coronavírus, cujo destino principal são as Unidades de Tratamento Intensivo (UTI) com equipamentos de respiração para ventilação mecânica.
As piores situações estão nas regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste, as mais pobres e mais dependentes do Sistema Único de Saúde (SUS). No Sul e no Sudeste, o Rio de Janeiro é o único estado precário nesse ponto.
Nos municípios, menos de 10% têm leitos de UTI, públicos ou privados, e os pacientes terão de ser encaminhados a hospitais de referência regionais em seus estados.
Embora na média nacional o SUS cumpra, no limite, a recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) de ter o mínimo de um leito de UTI para cada 10 mil habitantes, dois terços deles (17 dos 27 estados) não chegam a isso, segundo dados do Conselho Federal de Medicina com base em números do Ministério da Saúde e do IBGE.
Nos epicentros mundiais da epidemia, a demanda chegou a 2,4 leitos de UTI por 10 mil habitantes, segundo a Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib). É mais que o dobro da média disponível no setor público brasileiro.
Um atenuante, na comparação entre Brasil e Itália, por exemplo, é o menor percentual entre a população daqui de pessoas mais velhas, as principais afetadas pela doença.
No total, contando UTIs do SUS e privadas, o Brasil tem cerca de 47 mil leitos, divididos meio a meio em cada sistema. Somando os dois, a média sobe para 2,1 a cada 10 mil pessoas, abaixo da necessidade que vem sendo observada nos países mais afetados.
O problema é que 75% dos brasileiros usam o SUS e só 25% têm plano de saúde —que atendem com folga os parâmetros da OMS em todos os estados, com média de 4,8 leitos por 10 mil segurados.
Antes do início da epidemia no país, a taxa de ocupação das UTIs para adultos na rede pública já era de 95%, o que mantém sistematicamente os hospitais ligados ao SUS sob pressão. No setor privado, com mais leitos, a taxa é de 80%, segundo a Amib.
Nos casos graves de infecção pelo coronavírus, a experiência internacional mostra que os pacientes precisam de internação em UTIs por entre 14 a 21 dias —o dobro ou o triplo do tempo médio na rede pública em situações normais.
Nos outros casos, muito semelhantes a gripes, sequer é necessária a permanência em leito hospitalar, o que torna as UTIs o principal gargalo.
Outro complicador importante é que mais de 30% dos leitos de UTI são para crianças, e eles teriam de ser adaptados para adultos durante a crise da Covid-19.
“A questão é a distribuição desses leitos, levando em conta os dois sistemas [público e privado] e as disparidades regionais”, diz Ederlon Rezende, ex-presidente e membro do conselho consultivo da Amib.
No Nordeste, apenas 2 dos 7 estados (Pernambuco e Sergipe) cumprem, no SUS, o mínimo recomendado pela OMS. Nos sete do Norte, só Rondônia. Nos quatro do Centro-Oeste, apenas Goiás.
A expectativa é que o clima mais quente impeça a propagação do vírus nessas regiões. Mas isso não está demonstrado ainda, embora a maioria dos casos no Brasil ainda se concentre no Sul e no Sudeste.
O Rio de Janeiro é o único estado nessas duas regiões onde o sistema público está abaixo da meta, com 0,97 leito de UTI para cada 10 mil pessoas. Mas é o terceiro do país com mais leitos privados em proporção aos beneficiários dos planos (8,7 por 10 mil).
Depois de assistir ao impacto do coronavírus na Itália, o Ministério da Saúde agora promete aumentar de 1.000 para 2.000 a instalação de novos leitos de UTI na rede pública, o que ainda não cobriria as recomendações da OMS.
Procurado pela reportagem, o ministério não respondeu aos questionamentos encaminhados na sexta (13).
Mais leitos hospitalares comuns e de UTI, para pacientes graves, já estão no horizonte nos planos dos governos estaduais caso avance e se agrave a pandemia causada pelo novo coronavírus.
Alguns estados já preparam planos com leitos exclusivos para pacientes graves com Covid-19 ou preveem o uso da rede privada.
Segundo Rezende, da Amib, a montagem de um leito básico de UTI custa R$ 100 mil e sua manutenção, sobretudo com gasto destinado a pessoal, cerca de R$ 2.000 diários.
“Não há dúvida de que vamos ter um gargalo, o que vai exigir o bloqueio de cirurgias agendadas e a ampliação do tempo de trabalho de profissionais de UTIs”, diz Rodrigo Olmos, professor do departamento de Clínica Médica da USP e médico assistente do Hospital Universitário (HU).
No HU da USP, onde a procura por atendimento dobrou na última semana por suspeitas de infecção pelo covid-19, há apenas 12 leitos de UTI funcionando. Outros oito, para tratamento semi-intensivo, estão parados por falta de recursos.
Outra recomendação para abrir espaço nas UTIs seria adotar tratamentos paliativos para doentes terminais, e fora dessas unidades. Como alternativa às UTIs para casos graves pela Covid-19, também é possível usar outros espaços onde há equipamentos de respiração, como salas de cirurgia e pós-operatório.
Para Gustavo Gusso, professor do Departamento de Clínica Médica da USP, a vantagem do Brasil sobre os Estados Unidos, por exemplo, é ter um sistema de saúde integrado pelo SUS.
“Mas as prefeituras terão de se organizar rapidamente para indicar o que fazer com os doentes graves, e para quais hospitais devem ser enviados sem expô-los muito a outras pessoas”, afirma.
“Será preciso também segurar doentes menos graves para que não ocupem o lugar de outras pessoas nas UTIs.”