Bolsonaro é Bolsonaro, mas o STF e as instituições sabem defender o Brasil. Até dele.
(Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo, 18 de dezembro de 2020 | 03h00)
A vacinação contra a covid-19 preserva vidas, é um direito e uma obrigação coletiva e “não permite demagogia, hipocrisia, ideologias, obscurantismo, disputas político eleitoreiras e, principalmente, não permite ignorância”. Essa enxurrada de bom senso, que serve como uma verdadeira aula para todos e cada um, foi dada ontem pelo ministro Alexandre de Moraes, em mais um julgamento memorável do Supremo nesses nossos tempos tão sombrios, às vezes macabros.
Na votação a favor da vacina obrigatória, por bem ou por mal, Moraes mandou um claro recado ao presidente, ao ministro da Saúde, a governadores, prefeitos e seguidores desses lunáticos de internet que são contra vacinas, especialmente contra a “vacina da China”. Isso começa “de cima”, quando o presidente Jair Bolsonaro, não satisfeito em guerrear contra isolamento social, máscaras e “maricas”, declara: “Não vou tomar a vacina. Ponto final”.
Quantos, por ideologia ou ignorância, não acataram o grito de guerra do presidente contra as vacinas? Quantos, por se acharem “de direita”, sendo simplesmente burros, não começaram a ver demônios e “interesses geopolíticos” na Coronavac, chamada de “vacina da China” ou “do Doria” por Bolsonaro? Assim como isolamento e máscaras eram as únicas saídas para escapar do vírus e reduzir a contaminação, as vacinas são o único instrumento científico capaz de salvar vidas, trazer de volta a normalidade, os negócios e os empregos. Bolsonaro atacou aqueles, tentou combater estes.
As instituições, porém, salvam o País e o Supremo, que erra no varejo, nas brigas comezinhas, acerta no atacado, na defesa da democracia e da racionalidade. Foi assim contra golpistas, extremistas e fake news e quando decidiu que governadores e prefeitos não estariam sujeitos às maluquices de Bolsonaro na pandemia. E é assim, agora, ao permitir que União, Estados e municípios garantam, direta ou indiretamente, a obrigatoriedade da vacina. E que os pais sejam obrigados a imunizar seus filhos.
A decisão do Supremo – com o voto contrário, ora, ora, de Kassio Nunes – é um tanto confusa: o que é vacina obrigatória, mas não forçada? A melhor explicação é que ninguém vai ser puxado pelos cabelos ou “sofrer condução coercitiva” para se vacinar, como disse o procurador-geral, Augusto Aras, mas aqueles que se recusarem a fazê-lo sabem que vão sofrer as consequências.
Na prática, o Supremo autoriza empresas públicas e privadas, escolas e supermercados, cinemas e companhias aéreas, por exemplo, a recusarem funcionários e clientes que não sejam vacinados. Se você não toma vacina contra a febre amarela, é proibido de viajar a vários países. Se não tomar contra a covid-19, poderá sofrer sanções diferentes formas. Logo, onde se lê que o Supremo determinou a “obrigatoriedade”, leia-se que criou “mecanismos indutores” para a vacinação.
E para que tudo isso? Para, mais uma vez, botar o pé na porta e impedir, ou prevenir, arroubos insanos do presidente e do seu governo contra os interesses e os direitos à vida e à saúde da Nação. Assim como não se ouve falar mais em manifestação e convocações golpistas pela internet, o presidente mudou o tom, o tal ministro da Saúde foi obrigado a agir.
Aos trancos e barrancos, o governo lançou um plano nacional de vacinação e uma medida provisória para liberar R$ 20 bilhões, encomendou vacinas, engoliu a do Butantã (de origem chinesa), reincluiu os presos entre os prioritários e até convocou o Zé Gotinha. Bem, nenhuma das vacinas é por gotinhas, mas deixa para lá… O importante é que Bolsonaro continua sendo Bolsonaro, irrita, cansa, ameaça, desperdiça tempo, mas é obrigado a recuar e se render à realidade. Apesar dos pesares, o Brasil sabe se defender. Inclusive dele.