Bolsonaro subverte expectativa de busca de consensos inerente ao regime de 1988
(Editorial da Folha)
O regime constitucional de 1988 procurou corrigir o desequilíbrio que levou os sistemas que o precederam a oscilarem entre o impasse e o autoritarismo. O presidente da República não poderia ser fraco a ponto de tornar-se refém do humor circunstancial do Congresso. O chefe do governo tampouco deveria flanar acima das instituições.
A solução, engenhosa, foi dotar a Presidência de prerrogativas mais que suficientes para o seu incumbente liderar a agenda pública nacional, mas de empoderar em paralelo os organismos de Estado dedicados a controlar o Poder Executivo. Vem daí a saliência acumulada nas últimas décadas de órgãos como o Supremo Tribunal Federal e o Ministério Público Federal.
O pressuposto do sistema era que a sua mecânica estimularia o presidente a atuar em nome de consensos, com responsabilidade e moderação. Se no Legislativo poderia vigorar a lógica fragmentária, no Executivo os vetores tenderiam a privilegiar a visão do conjunto.
Em relação a esse enquadramento, a eleição e a primeira metade do mandato de Jair Bolsonaro são uma anomalia. O chefe de Estado agiu como líder sectário, investiu contra a aspiração majoritária de minimizar e abreviar o sofrimento com a pandemia, atacou Legislativo e Judiciário com mensagens e atitudes golpistas e atirou à lama o decoro exigido no cargo.
A atuação diante da crise sanitária talvez seja o maior fracasso do espírito constitucional de 1988 no caso do atual mandatário. Enquanto praticamente todos os homólogos de Bolsonaro pelo mundo entenderam a dimensão do desafio e agiram para aumentar a proteção dos seus cidadãos, o governante brasileiro tornou-se um patrocinador de atitudes de risco.
Também na contramão do que se faz no planeta, Bolsonaro saiu a alardear tratamentos sem eficácia comprovada e empregou recursos públicos em sua ideia fixa. Perseverou na demissão de ministros da Saúde até achar alguém lisonjeado com genuflexões diante do chefe.
Sabotou o governador de São Paulo —chegou a comemorar a morte de um voluntário nos testes da vacina paulista—, enquanto o Executivo federal oferecia nada a 212 milhões de pessoas. O Brasil não tem data para começar a campanha de vacinação, não tem imunizantes nem seringas e assiste a outras nações latino-americanas vacinarem os seus cidadãos.
Para Jair Bolsonaro, no entanto, a irresponsabilidade não se limita à incompetência que compromete a saúde —e por essa via a renda— dos brasileiros. O exemplo que vem do presidente também desestimula a vacinação, seja ao difundir idiotices biológicas análogas ao terraplanismo geográfico, seja ao declarar que não pretende se vacinar.
Na frente institucional, o balanço não foi melhor. O mandatário tornou-se agitador de motins contra o Supremo e o Congresso. Quis trazer as Forças Armadas para o seu balé subversivo ao participar de protestos de lunáticos diante da caserna e ao ameaçar descumprir ordens judiciais. A percepção de que insistir no delírio conduziria ao impeachment o fez recuar.
Numa inversão de papéis em relação ao esperado pelo traçado constitucional, o presidente da Câmara dos Deputados acabou assumindo o papel de zelador da moderação e da racionalidade, barrando sandices que vinham do Planalto e propiciando legislações importantes para o futuro, como o Fundeb e a reforma previdenciária.
A desídia pela costura parlamentar do chefe do Executivo —aliada a seu instinto corporativista a favor da gastança e dos privilégios estamentais— impede hoje uma alternativa fiscalmente viável para o fim do auxílio emergencial.
A ideia de remanejar políticas públicas para custear a expansão do socorro aos mais pobres necessita de um presidente responsável, além de politicamente hábil, para ser executada. Não é Bolsonaro.
Este nem mesmo entendeu que inexiste solução para a economia que não passe, necessariamente, pela vacinação em massa. Não percebe que ao trabalhar contra a imunização trai seus próprios interesses, que dirá os da sociedade.
O 2020 de Bolsonaro
18.fev – Faz ofensa de cunho sexual a Patrícia Campos Mello, da Folha
4.mar – Ironiza mau desempenho da economia: “O que é PIB?”
- mar– Chama a Covid-19 de “gripezinha”
- mar– Critica fechamento de escolas e comércio, ataca governadores e culpa imprensa
- mar– No aniversário do golpe militar, diz que “hoje é o dia da liberdade”
16.abr – Troca Luiz Henrique Mandetta por por Nelson Teich na Saúde
19.abr – Em frente ao QG do Exército, discursa em manifestação onde se defendia golpe militar
24.abr – É acusado de tentar interferir na PF por Sergio Moro, que deixa o governo
15.mai – Leva Teich a deixar a Saúde
7.jul – Anuncia ter contraído a Covid-19
23.ago – “A vontade é encher tua boca de porrada”, diz a um jornalista que o questionou sobre depósitos para a primeira-dama
22.set – Faz discurso negacionista na ONU
21.out – Desautoriza ministro Eduardo Pazuello e suspende compra da Coronavac
10.nov – Celebra suspensão dos estudos da Coronavac motivada pela morte de um voluntário