A anomalia

By | 03/01/2021 6:22 am

Bolsonaro subverte expectativa de busca de consensos inerente ao regime de 1988

(Editorial da Folha)

 

O regime constitucional de 1988 procurou corrigir o desequilíbrio que levou os sistemas que o precederam a oscilarem entre o impasse e o autoritarismo. O presidente da República não poderia ser fraco a ponto de tornar-se refém do humor circunstancial do Congresso. O chefe do governo tampouco deveria flanar acima das instituições.

 

A solução, engenhosa, foi dotar a Presidência de prerrogativas mais que suficientes para o seu incumbente liderar a agenda pública nacional, mas de empoderar em paralelo os organismos de Estado dedicados a controlar o Poder Executivo. Vem daí a saliência acumulada nas últimas décadas de órgãos como o Supremo Tribunal Federal e o Ministério Público Federal.

 

O pressuposto do sistema era que a sua mecânica estimularia o presidente a atuar em nome de consensos, com responsabilidade e moderação. Se no Legislativo poderia vigorar a lógica fragmentária, no Executivo os vetores tenderiam a privilegiar a visão do conjunto.

 

Em relação a esse enquadramento, a eleição e a primeira metade do mandato de Jair Bolsonaro são uma anomalia. O chefe de Estado agiu como líder sectário, investiu contra a aspiração majoritária de minimizar e abreviar o sofrimento com a pandemia, atacou Legislativo e Judiciário com mensagens e atitudes golpistas e atirou à lama o decoro exigido no cargo.

 

A atuação diante da crise sanitária talvez seja o maior fracasso do espírito constitucional de 1988 no caso do atual mandatário. Enquanto praticamente todos os homólogos de Bolsonaro pelo mundo entenderam a dimensão do desafio e agiram para aumentar a proteção dos seus cidadãos, o governante brasileiro tornou-se um patrocinador de atitudes de risco.

 

Também na contramão do que se faz no planeta, Bolsonaro saiu a alardear tratamentos sem eficácia comprovada e empregou recursos públicos em sua ideia fixa. Perseverou na demissão de ministros da Saúde até achar alguém lisonjeado com genuflexões diante do chefe.

 

Sabotou o governador de São Paulo —chegou a comemorar a morte de um voluntário nos testes da vacina paulista—, enquanto o Executivo federal oferecia nada a 212 milhões de pessoas. O Brasil não tem data para começar a campanha de vacinação, não tem imunizantes nem seringas e assiste a outras nações latino-americanas vacinarem os seus cidadãos.

 

Para Jair Bolsonaro, no entanto, a irresponsabilidade não se limita à incompetência que compromete a saúde —e por essa via a renda— dos brasileiros. O exemplo que vem do presidente também desestimula a vacinação, seja ao difundir idiotices biológicas análogas ao terraplanismo geográfico, seja ao declarar que não pretende se vacinar.

 

Na frente institucional, o balanço não foi melhor. O mandatário tornou-se agitador de motins contra o Supremo e o Congresso. Quis trazer as Forças Armadas para o seu balé subversivo ao participar de protestos de lunáticos diante da caserna e ao ameaçar descumprir ordens judiciais. A percepção de que insistir no delírio conduziria ao impeachment o fez recuar.

 

Numa inversão de papéis em relação ao esperado pelo traçado constitucional, o presidente da Câmara dos Deputados acabou assumindo o papel de zelador da moderação e da racionalidade, barrando sandices que vinham do Planalto e propiciando legislações importantes para o futuro, como o Fundeb e a reforma previdenciária.

 

A desídia pela costura parlamentar do chefe do Executivo —aliada a seu instinto corporativista a favor da gastança e dos privilégios estamentais— impede hoje uma alternativa fiscalmente viável para o fim do auxílio emergencial.

 

A ideia de remanejar políticas públicas para custear a expansão do socorro aos mais pobres necessita de um presidente responsável, além de politicamente hábil, para ser executada. Não é Bolsonaro.

 

Este nem mesmo entendeu que inexiste solução para a economia que não passe, necessariamente, pela vacinação em massa. Não percebe que ao trabalhar contra a imunização trai seus próprios interesses, que dirá os da sociedade.

 

O 2020 de Bolsonaro

18.fev – Faz ofensa de cunho sexual a Patrícia Campos Mello, da Folha

4.mar – Ironiza mau desempenho da economia: “O que é PIB?”

  1. mar– Chama a Covid-19 de “gripezinha”
  2. mar– Critica fechamento de escolas e comércio, ataca governadores e culpa imprensa
  3. mar– No aniversário do golpe militar, diz que “hoje é o dia da liberdade”

16.abr – Troca Luiz Henrique Mandetta por por Nelson Teich na Saúde

19.abr – Em frente ao QG do Exército, discursa em manifestação onde se defendia golpe militar

24.abr – É acusado de tentar interferir na PF por Sergio Moro, que deixa o governo

15.mai – Leva Teich a deixar a Saúde

7.jul – Anuncia ter contraído a Covid-19

23.ago – “A vontade é encher tua boca de porrada”, diz a um jornalista que o questionou sobre depósitos para a primeira-dama

22.set – Faz discurso negacionista na ONU

21.out – Desautoriza ministro Eduardo Pazuello e suspende compra da Coronavac

10.nov – Celebra suspensão dos estudos da Coronavac motivada pela morte de um voluntário

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Category: Nacionais

About Luiz Gonzaga Lima de Morais

Formado em Jornalismo pelo Universidade Católica de Pernambuco, em 1978, e em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, em 1989. Faz radiojornalismo desde março de 1980, com um programa semanal na Rádio Espinharas FM 97.9 MHz (antiga AM 1400 KHz), na cidade de Patos (PB), a REVISTA DA SEMANA. Manteve, de 2015 a 2017, na TV Sol, canal fechado de televisão na cidade de Patos, que faz parte do conteúdo da televisão por assinatura da Sol TV, o SALA DE CONVERSA, um programa de entrevistas e debates. As entrevistas podem ser vistas no site www.revistadasemana.com, menu SALA DE CONVERSA. Bancário aposentado do Banco do Brasil e Auditor Fiscal do Trabalho aposentado.

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