Safadeza

By | 31/01/2021 7:35 am

Os que mandam e influem na máquina estatal furam a fila da vacina em favor de si mesmos

(J.R.Guzzo, O Estado de S.Paulo)

 

O início da vacinação em massa contra a covid deveria ser um momento de esperança, de apoio aos que têm de ser imunizados com mais urgência e, em geral, de solidariedade e espírito público. Não está sendo assim. Em vez disso, mal foi aplicada a primeira dose, começaram a estourar por todo o País denúncias de desrespeito grosseiro ao cronograma da vacinação, com os que mandam e influem na máquina estatal furando a fila em favor de si mesmos, de parentes, de amigos e de amigos dos amigos.

 

Pensando bem, a pergunta mais adequada diante do que está acontecendo é a seguinte: qual a novidade? Seria mesmo impossível, diante dos usos, costumes e vícios da casta superior que governa de fato este país, imaginar que essa gente aceite a ideia de que todos os cidadãos têm os mesmos direitos e deveres – e que, portanto, todos deveriam cumprir as regras adotadas para a aplicação progressiva da vacina. Na sua cabeça, as pessoas não são iguais.

Em Goiás, secretário de Saúde de Pires do Rio é afastado após furar fila e vacinar a mulher

 

Ao contrário: o Brasil, para eles, se divide entre os que têm crachá de autoridade em qualquer coisa que se relacione com “governo”, e os que não têm. Eles têm. Então, com a maior naturalidade do mundo, tomam a vacina na frente dos outros. Por que raios os donos do aparelho público e os que influem nele iriam respeitar as regras da vacinação se, no resto do tempo, não respeitam regra nenhuma? É a lei do “sabe com quem está falando?”, mais forte no Brasil que todos os 250 artigos da Constituição Cidadã juntos.

 

Episódios de desrespeito aberto ao cronograma já ocorreram em mais de dez Estados; na próxima contagem, é possível que a fraude consiga atingir todos os 27. Em Manaus, aproveitando mais uma vez os poderes de mini-ditador que ele e milhares de outros chefetes ganharam com a covid, o prefeito teve um surto: baixou decretos nomeando pelo menos dez médicos como “gerentes de produto” – isso mesmo, “gerentes de produto” – e com isso todos puderam ser vacinados logo no primeiro dia. Mais: proibiu a divulgação do que tinha acabado de fazer – como se Manaus fosse um território com leis diferentes das do Brasil, no qual o prefeito tem direito de fazer censura oficial. Com a intervenção do Ministério Público, achou melhor baixar o facho – mas as vacinas, à essa altura, já estavam aplicadas.

 

Em São Paulo, médicos da Prefeitura brigam em público com médicos do Estado, acusando-se mutuamente de furar a fila para tomar a vacina; até estudantes de medicina entraram nesse bonde e foram vacinados como soldados da “linha de frente”. Uma secretaria da Saúde acha que a outra secretaria da Saúde está lhe passando a perna; reclamam que o envio das doses não está equilibrado. Na Bahia e em Sergipe, prefeitos de cidades do interior, que não têm nenhum direito a passar na frente de ninguém, mas têm o controle sobre as doses entregues a eles, foram os primeiros a se vacinar; como desculpa, disseram que estavam “dando exemplo”, para “incentivar a população” a tomar a vacina. Que vacina? As doses que chegaram já foram consumidas por eles próprios e por quem mais tem carteirinha.

 

Em PernambucoCearáParaíbaRio Grande do NorteRio de Janeiro e Distrito Federal, pelo menos, os procuradores de Justiça investigam safadezas parecidas – políticos, médicos recém nomeados, um gerente de informática e até um fotógrafo foram observados furando fila. E a vacinação dos milhões de brasileiros que não têm nada a ver com o serviço público? Para esses ainda “não dá data marcada”. Que esperem: autoridades, médicos que distribuem as doses da vacina e outros viajantes da primeira classe estatal estão “dando exemplo” e consumindo os estoques disponíveis.

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Category: Opinião

About Luiz Gonzaga Lima de Morais

Formado em Jornalismo pelo Universidade Católica de Pernambuco, em 1978, e em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, em 1989. Faz radiojornalismo desde março de 1980, com um programa semanal na Rádio Espinharas FM 97.9 MHz (antiga AM 1400 KHz), na cidade de Patos (PB), a REVISTA DA SEMANA. Manteve, de 2015 a 2017, na TV Sol, canal fechado de televisão na cidade de Patos, que faz parte do conteúdo da televisão por assinatura da Sol TV, o SALA DE CONVERSA, um programa de entrevistas e debates. As entrevistas podem ser vistas no site www.revistadasemana.com, menu SALA DE CONVERSA. Bancário aposentado do Banco do Brasil e Auditor Fiscal do Trabalho aposentado.

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