Em entrevista ao Estadão, presidente do conselho reafirma defesa da autonomia do médico ao receitar remédios sem eficácia contra a covid
(Entrevista com Mauro Ribeiro, presidente do Conselho Federal de Medicina)
(Fabiana Cambricoli, O Estado de S.Paulo)
Mesmo após a publicação, ao longo dos últimos meses, de estudos que demonstram a ineficácia de medicamentos como a cloroquina contra a covid-19 e a manifestação de entidades como a Organização Mundial da Saúde (OMS) desaconselhando o uso do remédio, o Conselho Federal de Medicina (CFM) defende que ainda não há consenso científico sobre o uso dessas drogas no tratamento precoce da doença.
Em entrevista ao Estadão, o presidente do órgão, Mauro Ribeiro, disse que o conselho não pretende rever parecer de abril do ano passado que autoriza os médicos brasileiros a prescreverem o remédio.
“Essa ideia de que a ciência já concluiu que essas drogas não têm efeito não é 100% verdadeira. Se você for pra literatura, você tem de tudo: trabalhos que mostram efetividade dessas drogas no tratamento inicial da covid e outros tantos que mostram que essas drogas não têm efeito nenhum na covid. Ambos os lados têm trabalhos com metodologias questionáveis”, afirmou.
Presidente do conselho reafirma defesa da autonomia do médico ao receitar remédios sem eficácia contra a covid Foto: Roque de Sá/Agência Senado
Questionado sobre os relatos de efeitos colaterais graves associados ao uso do chamado kit covid (que inclui, além da cloroquina, remédios como azitromicina e ivermectina), o presidente do conselho afirmou que o médico tem autonomia para indicar as medicações que julgar necessárias para cada paciente, mas ressaltou que profissionais que propagandeiam o kit como cura milagrosa da doença ou prescrevem coquetéis de remédios que podem causar danos estão sujeitos a responder sindicância nos conselhos regionais.
Na última terça-feira, o Estadão revelou que a utilização das drogas do kit covid já levou cinco pacientes à fila do transplante de fígado em São Paulo e está sendo apontada como causa de ao menos três mortes por hepatite causada por remédios. Ribeiro disse que ainda é preciso saber as condições dessas mortes, mas que o conselho está em alerta para os casos. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
O parecer que autoriza os médicos a prescreverem cloroquina contra a covid é de abril de 2020. Desde então, a gente teve a publicação de vários estudos em periódicos respeitados mostrando a ineficácia da medicação e recomendação da OMS contra o uso. Por que não houve a revisão desse parecer depois dessas novas evidências?
Nós temos uma doença altamente transmissível, que mata. É uma doença que, na fase inicial, não tem tratamento reconhecido de maneira indubitável por parte da ciência. Agora, existem estudos observacionais que mostram o benefício de algumas drogas. Só que esse tratamento é tão politizado no Brasil que quem defende o tratamento é taxado de simpatizante do presidente da República e quem não faz o tratamento é taxado imediatamente como contrário ao presidente. E essa discussão é tudo que nós não precisamos. As drogas que são usadas têm poucos efeitos colaterais. Embora, agora, existam relatos de duas universidades brasileiras de cinco pacientes que teriam evoluído à morte ou para fila de transplante (de fígado) e isso teria sido causado por uma dessas drogas. Não tem nenhuma comprovação científica que foi uma dessas drogas que causou e nem as condições que isso aconteceu, mas nós estamos em alerta. As informações que existem dessas drogas são de poucos efeitos colaterais. A classe médica está dividida. Existem aqueles que acreditam piamente no tratamento, por experiências próprias ou por relatos que existem na literatura. Essa ideia de que a ciência já concluiu que essas drogas não têm efeito não é 100% verdadeira. Porque se você for pra literatura, você tem de tudo, tem trabalhos que mostram efetividade dessas drogas no tratamento inicial da covid e outros tantos que mostram que essas drogas não têm efeito nenhum na covid. Ambos os lados têm trabalhos com metodologias questionáveis. O que o Conselho Federal de Medicina decidiu no parecer 4 de 2020, que é para uma droga (cloroquina/hidroxicloroquina), mas serve para as outras por analogia, é que já que não existe um consenso na literatura, já que é uma doença devastadora, que mata e que não tem tratamento e que, no aspecto observacional, existem algumas drogas que podem ter efeito, nós delegamos ao médico brasileiro, na ponta, junto com o paciente, decidir qual o tratamento que vai ser feito. O médico tem que sentar com o paciente e explicar que é um tratamento que não tem comprovação que faça algum alguma diferença e que, se o paciente quiser ser tratado e o médico se disponibilizar a tratar, que seja feito o tratamento. A partir do momento que um estudo mostrar que uma determinada droga faz diferença, a gente pode mudar o parecer no momento que isso se tornar uma coisa importante.
Mas um estudo observacional não tem o mesmo peso do que um estudo randomizado duplo cego (considerado padrão ouro da pesquisa clínica). E os estudos feitos com essa metodologia padrão ouro mostram a ineficácia da cloroquina e azitromicina. Em quais estudos vocês se baseiam?
Não existe uma instituição que seja guiada mais pela ciência do que o Conselho Federal de Medicina. Temos profissionais contratados que fazem um rastreamento de tudo que acontece na literatura, mas nós não temos verdades absolutas em relação a essa doença. Temos uma série de dúvidas. Nós temos uma relação de estudos aqui, podemos te passar depois (veja aqui). Também existem estudos prospectivos e randomizados mostrando a ação do tratamento precoce. Agora, todos são passíveis de crítica: tanto os que mostram eficácia quanto aqueles que mostram que ele não tem qualquer tipo de ação. Nós nem incentivamos nem proibimos. É um tema dificílimo. Não existe consenso na classe médica. Nenhuma entidade é detentora do saber. Todo mundo estuda, todo mundo faz pesquisa. Nós temos a maior responsabilidade entre as entidades, que é determinar o que o médico pode ou não fazer. Então, as nossas decisões não são tão simples assim.
Mas alguns médicos anunciam esse tratamento como se fosse garantia de cura, falam que tratamento precoce salva vidas…
Existe uma resolução do CFM sobre propaganda enganosa. Então, para todos os excessos, estão sendo abertas sindicâncias nos conselhos regionais. Tem médicos que fazem filmes falando das maravilhas do tratamento precoce. O que norteia o posicionamento é o parecer, só quero esclarecer ele dá respaldo para quem quer e quem não quer. Agora, sabemos que existem excessos dos dois lados. Os médicos que se excedem de forma pública estão sujeitos a sindicâncias abertas e eles vão ter o direito de apresentarem sua defesa e serão julgados pelos seus pares. Esses excessos são condenáveis, sim. O médico não pode, baseado no parecer do CFM, dizer que o tratamento é milagroso.
Nesse momento, então, o CFM não pretende rever aquele parecer?
Não, nesse momento nós não vemos nenhuma necessidade de modificar o parecer e temos dificuldade de entender por que tamanha resistência de se respeitar a autonomia do médico e a autonomia do paciente para o tratamento de uma doença que não tem tratamento conhecido nessa fase. Outra coisa: o nível do médico brasileiro é muito bom, ele estuda, não precisa de ninguém para tutorá-lo. Nós podemos apontar caminhos, mas não determinar o que ele tem que fazer ou não.
Corticoides e anticoagulantes também estão sendo prescritos dentro do chamado ‘tratamento precoce’, sendo que estudos indicam que eles têm benefícios somente quando o paciente está internado, e podem até piorar a doença se prescritos no início dos sintomas. A prescrição indevida desses remédios pode ser considerada infração ética?
Os anticoagulantes foram delineados para o pacientes grave, você está coberta de razão, só que estão sendo feitos estudos também para o uso ainda na fase precoce da doença. É infração ética? Depende. Pode ser ou pode não ser. Se em algum momento houver uma denúncia no conselho regional de medicina contra um médico que fez uso de determinadas doses em determinada fase da doença e o paciente evoluiu mal, ele vai responder por aquilo que ele fez. Hoje, corticoides e anticoagulantes são preconizados para pacientes graves, na terapia intensiva. Agora, o médico que usa na fase precoce, aí tem uma série de variáveis que, no caso concreto, têm que ser avaliadas para saber se houve desvio médico ou não.
O CFM se preocupa com esse uso indiscriminado do chamado kit covid, que tem várias medicações misturadas?
Preocupa muito porque existe uma norma da boa medicina em que você deve prescrever o menor número de medicações possíveis para o paciente. Cada vez que você agrega uma nova droga, você corre sempre o risco de interação medicamentosa, podendo levar realmente a efeitos catastróficos. Somos contra uma prefeitura ou quem quer que seja entregar o kit para o médico dizendo que ele tem que prescrever aquilo. Agora, o médico deve ter a autonomia dele, ele pode prescrever as medicações que ele julgar necessário.
Se um médico prescreve todos esses medicamentos juntos e o paciente desenvolve algum efeito colateral, ele pode ser responsabilizado?
Com certeza absoluta, claro que pode. Porque quando nós damos autonomia para o médico, não é uma carta de alforria para ele fazer aquilo que quer. O ato médico que ele pratica é única e inteira responsabilidade dele. Se num determinado caso, ele juntar cinco ou seis drogas e, por alguma razão, o paciente apresentar algum efeito e aquilo se transformar numa denúncia no conselho regional de medicina, o caso vai ser estudado, vai ter que ver se teve interação medicamentosa, se aquelas drogas eram indicadas para aquele paciente e se ele teve algum desvio em relação ao código de ética médica ou não. Se ele não praticar uma boa medicina, ele vai responder por isso, sim.
O CFM já foi crítico a gestões passadas do Ministério da Saúde. Como o conselho se posiciona nesse momento de caos? Quais devem ser as prioridades do Ministério da Saúde?
Temos sido críticos inclusive ao presidente (Jair) Bolsonaro. Recentemente, teve um aplicativo que foi colocado no ar pelo ministério que era um verdadeiro absurdo. Fizemos um ofício ao (ex-)ministro (Eduardo) Pazuello pedindo a retirada do aplicativo do ar e dando as razões. O ministro imediatamente tirou o aplicativo do ar. Existem informações desencontradas por parte do governo federal? Claro que existem. Existe um excesso em relação a preconização do chamado tratamento precoce? Com certeza absoluta. Mas o médico brasileiro sabe o que faz. Nós precisamos agora reunificar o País. Isso é urgente. Não existem verdades consolidadas em relação à covid. Precisamos reunir o Congresso Nacional, Ministério da Saúde à frente, junto com as secretarias de saúde dos Estados e municípios e discutirmos a realidade do Brasil. O que precisa é o Ministério da Saúde assumir o protagonismo dessa questão. Nós precisamos vacinar em massa no Brasil. O Brasil tem o melhor programa de imunização nacional do mundo. A partir do momento que nós tivermos vacina, e nós vamos ter, acho que a gente só não vai alcançar os Estados Unidos.