O plenário do STF rejeitou a tentativa de transformar um julgamento jurídico em debate religioso e palanque político
(Editorial do jornal O Estado de S. Paulo)
O plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou a tentativa de transformar um julgamento jurídico em debate religioso e palanque político. Por 9 votos a 2, os ministros entenderam que o Estado de São Paulo pode restringir temporariamente a realização de atividades religiosas coletivas presenciais, como medida de enfrentamento da pandemia de covid-19.
Proposta pelo Partido Social Democrático (PSD), a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 811 postulava que o Decreto 65.563/2021 – que, entre outras medidas emergenciais, vetou “a realização de cultos, missas e demais atividades religiosas de caráter coletivo” – violava a liberdade religiosa.
Em sua manifestação, o advogado-geral da União, André Mendonça, recorreu à Bíblia e à sua compreensão do que é o cristianismo. “Não há cristianismo sem vida comunitária, não há cristianismo sem a casa de Deus, sem o dia do Senhor. É por isso que os verdadeiros cristãos não estão dispostos jamais a matar por sua fé, mas estão sempre dispostos a morrer para garantir a liberdade de religião e de culto”, disse.
A agravar a confusão, o próprio Ministério Público Federal aderiu à tese de que não seria possível proibir celebrações religiosas durante a pandemia. Segundo o procurador-geral da República, Augusto Aras, medidas restritivas ofenderiam “o núcleo essencial do direito fundamental ao livre exercício dos cultos religiosos”.
A argumentação é inteiramente descabida. Assim como outras medidas restritivas adotadas por governadores e prefeitos em todo o País, o decreto do governo do Estado de São Paulo não priva ninguém de sua liberdade religiosa. A ninguém foi imposto determinado credo, como também ninguém foi impedido de professar sua fé. A liberdade religiosa permanece intacta.
Por mais fervorosos que tenham sido os discursos de André Mendonça e de Augusto Aras – numa demonstração de especial temor ao Palácio do Planalto –, na ADPF 811 não estava em discussão a liberdade religiosa, e sim se atividades religiosas devem se submeter às regras gerais estabelecidas pelo poder público. A rigor, num Estado Democrático de Direito, tal questão está definida por princípio, tal como exige a laicidade.
Todas as pessoas, físicas ou jurídicas, devem respeitar a lei e as normas vigentes. Não há ninguém acima da lei. Por isso, também as igrejas devem obedecer às regras relativas ao enfrentamento da pandemia, assim como devem cumprir a legislação urbanística, tributária e sanitária. Por exemplo, as igrejas devem respeitar os horários de silêncio noturno, da mesma forma que todos os outros estabelecimentos. Tal restrição não é nenhuma violação à liberdade religiosa.
Além do evidente e necessário cuidado com a saúde pública, a decisão do STF faz valer um importantíssimo princípio constitucional, o da igualdade de todos perante a lei. A profissão de uma determinada crença – mesmo tendo uma dimensão comunitária, como a do sr. André Mendonça – não confere um privilégio sobre os demais cidadãos. Todos estão submetidos às mesmas limitações.
Vale notar que a mentalidade de privilégio não se manifesta apenas na oposição às medidas de isolamento social relativas à pandemia de covid-19. Muitas igrejas acham que não precisam pagar os tributos relativos a suas atividades. Segundo revelado pelo Estado, igrejas têm R$ 1,9 bilhão em débitos inscritos na Dívida Ativa da União.
A Constituição proíbe “instituir impostos sobre templos de qualquer culto”, mas há igrejas que se consideram imunes de qualquer obrigação tributária. Por exemplo, entre as dívidas com a União, há casos de não pagamento de contribuição previdenciária e do Imposto de Renda já descontados do salário dos empregados.
Sem diminuir a liberdade de religião e de crença, o Supremo reconhece que os entes federativos têm o poder – a rigor, o dever – de zelar pela saúde da população. As liberdades e garantias fundamentais continuam válidas. O que não cabe é conferir, especialmente em uma pandemia, privilégio a alguns grupos. Todos estão sob as mesmas regras.