Da perplexidade ao desprezo
Nenhum presidente digno do cargo pressionaria um autor do requerimento da CPI a ampliar investigações e trabalhar pelo impeachment de ministros do STF
(Editorial do jornal O Estado de S. Paulo)
Houve um tempo em que os brasileiros se chocavam com o linguajar chulo do presidente Jair Bolsonaro, tão impróprio para o exercício da chefia de governo. Os áulicos de Bolsonaro se esforçam para qualificar esse comportamento como “autêntico”, pois, segundo eles, o presidente “fala o que pensa”. E isso, na visão desses sabujos, seria positivo, pois o aproximaria do “povo”, em suposto contraste com o distanciamento das elites políticas.
Hoje, contudo, ninguém fica mais perplexo com as grosserias de Bolsonaro. E o povo, conforme atestam as pesquisas de opinião, quer cada vez mais distância do presidente, pois a conduta indecorosa de Bolsonaro constrange os brasileiros decentes. Cansados das obscenidades de Bolsonaro, esses cidadãos – a maioria da população – certamente lhe reservam agora o mais olímpico desprezo.
Fossem outros os tempos, a agressão de Bolsonaro ao ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), questionando-lhe a moralidade e acusando-o de fazer “politicalha” ao ordenar que o Senado instaurasse a CPI da Pandemia, teria causado furor – afinal, nenhum presidente é obrigado a gostar dos ministros do Supremo, mas deve respeitá-los. Decerto, Bolsonaro pretendia provocar uma reação popular tão virulenta quanto a sua, de modo a criar um clima de briga de rua, tão ao gosto do bolsonarismo. Mas a ruidosa incivilidade do presidente gerou uma resposta ponderada do ministro Barroso, que se limitou a dizer que apenas aplicou a Constituição, que consultou todos os colegas de Supremo e que continuará a desempenhar seu papel “com seriedade, educação e serenidade”. E nada mais.
Naturalmente destemperado, como admitem até mesmo seus devotados seguidores, como se isso fosse uma qualidade, Bolsonaro se torna ainda mais virulento quando se considera acuado. O Brasil foi apresentado a essa característica do presidente na famigerada reunião ministerial de abril de 2020, quando Bolsonaro, já ciente da encrenca política derivada da pandemia, usou extenso repertório de termos chulos para se referir a outros Poderes, a governadores e a prefeitos.
Na época, os brasileiros ficaram pasmos com a capacidade de Bolsonaro de envergonhar o País que lhe foi dado governar. Além de ofender, nos termos mais rasteiros, aqueles que considera seus inimigos, Bolsonaro se esmera em acusá-los das maiores barbaridades sempre sem apresentar provas. Lança suas suspeitas no ar, e as milícias virtuais bolsonaristas, movidas a fraudes, transformam essas patranhas em verdades inquestionáveis. Não demorou para que o padrão de desfaçatez ficasse bem estabelecido e, agora, já não surpreende mais ninguém – mesmo quando Bolsonaro chama seus compatriotas de “maricas” por se preocuparem com a pandemia.
Hoje já se sabe que Bolsonaro é simplesmente incapaz de reconhecer os erros que comete e os limites do poder de que foi investido. Sempre que alguém aponta seus equívocos ou o adverte sobre seu comportamento autoritário, Bolsonaro reage com truculência. Sua hostilidade à CPI da Pandemia mostra seu inconformismo com os freios e contrapesos próprios do regime democrático.
Nenhum presidente digno do cargo pressionaria um dos autores do requerimento da CPI não só a ampliar o escopo das investigações, como a trabalhar pelo impeachment de ministros do Supremo, como fez Bolsonaro, tudo com o evidente objetivo de causar tumulto e interferir no Judiciário e no Legislativo. De quebra, falou em “sair na porrada” com o líder da oposição no Senado, Randolfe Rodrigues (Rede-AP).
Em vez de se preocupar em reunir dados e informações que demonstrem a suposta correção de suas ações durante a pandemia, para atender às demandas da CPI, Bolsonaro parte para a chantagem – atitude típica de quem não tem argumentos.
O presidente se tornou previsível: se Bolsonaro jamais aceitou a hierarquia e as normas dos quartéis em que serviu quando foi um mau militar, é perda de tempo esperar que ele refreie sua natureza e, de uma hora para outra, passe a aceitar os limites institucionais. Sendo assim, que os demais Poderes não se deixem intimidar pelos arreganhos autoritários de quem jamais teve nem bons modos nem apreço pela democracia.