No momento em que se cobra do governo maior celeridade ao prometido programa de privatizações, vendido como base do compromisso bolsonarista de otimizar o Estado, a maior tarefa do País talvez seja, antes, reestatizar o Estado, loteado pelos privilegiados de sempre.
Nenhum projeto de modernização do Estado pode ser levado a sério se o governo desconsidera o caráter público do Orçamento – que deve ser, em essência, o resultado do debate democrático a respeito das expectativas e demandas do conjunto da população.
Se, como parece ser o caso, alguns parlamentares, por sua proximidade do governo, têm poder de definir o destino de recursos orçamentários sem qualquer possibilidade de escrutínio público, então parte do Orçamento está sendo tratada como se coisa privada fosse.
Como se sabe, todos os parlamentares, independentemente de sua filiação partidária ou de sua inclinação política, têm direito de apresentar emendas ao Orçamento para destinar recursos como bem entenderem. Pode-se questionar se essa é a melhor maneira de gerenciar o Orçamento, dado o caráter claramente eleitoreiro dessas emendas, mas ao menos o valor é limitado a R$ 16,2 milhões por ano e, mais importante, é franqueado a todos os congressistas, sem diferenciá-los de nenhuma maneira.
No caso levantado pelo Estado, contudo, o governo abriu a parlamentares camaradas a possibilidade de determinar de que maneira parte dos recursos alocados ao Ministério do Desenvolvimento Regional seria utilizada, embora essa função fosse exclusiva do Executivo. A razão dessa exclusividade é simples: a execução deve ser estabelecida pelo Ministério, e não por um ou outro parlamentar, justamente para reduzir a possibilidade de que interesses privados prevaleçam na hora de estipular o gasto público.
Os governistas têm dito que não há qualquer irregularidade nisso, pois seria parte do jogo político legítimo. No raciocínio bolsonarista, é natural que os parlamentares governistas tenham poder de definir o destino dessa fatia discricionária do Orçamento, no Ministério do Desenvolvimento Regional ou em qualquer outro, porque são, afinal, base de apoio a Bolsonaro.
Obviamente nada disso é republicano, tampouco democrático. Nenhuma república democrática é digna do nome quando a administração do dinheiro público está à mercê de influências pessoais de forma tão escancarada. À semelhança das antigas monarquias absolutistas, em que os cortesãos podiam tudo e os demais súditos deviam se limitar a trabalhar e pagar impostos, esse modelo defendido pelo governismo bolsonarista privilegia os amigos do rei – como se o dinheiro recolhido dos contribuintes, uma vez despejados nos cofres do Tesouro, deixasse automaticamente de ser público.
Essa ratio do governismo bolsonarista é sintomática do profundo abismo que há entre o discurso de modernização do Estado e a prática clientelista e personalista do presidente Bolsonaro e do Centrão, que ora coloniza o governo.
São muitas as expressões dessa contradição, desde as gestões do presidente em órgãos de Estado para proteger os interesses de sua família, até o encaminhamento de medidas que privilegiam os grupos que orbitam o presidente – cujo mais recente exemplo foi a portaria do Ministério da Economia que permitiu a Bolsonaro e a seus ministros militares acumularem aposentadoria e salário mesmo que o resultado supere o teto constitucional para o funcionalismo.
Sob o governo Bolsonaro, o processo de privatização do Estado foi acelerado, mas não para aperfeiçoá-lo, e sim para rateá-lo entre os amigos e parentes.