A natureza humana de Bolsonaro
A razão, segundo um clássico conservador, não é da natureza humana sua parte mais importante
O presidente Jair Bolsonaro tem conseguido manter a média de proferir quase diariamente algo que ofenda o “bom senso” ou a “razão” no que se refere ao respeito às leis e instituições, ao decoro do cargo, à veracidade objetiva dos fatos e à civilidade no trato de adversários políticos – ou tudo junto. Fora entre seus apoiadores, tem conseguido gerar um cansaço geral e o “estamos pagando para ver” dos ministros do Supremo e dos comandantes militares.
À espera da próxima bolsonarice o colunista pede licença para lembrar, com nostalgia, clássicos lidos nos tempos de sua (do colunista) juventude acadêmica na Alemanha da década dos setenta, quando dobrava como estudante de Ciências Políticas e correspondente em Bonn do Estadão: Hannah Arendt e Hans J. Morgenthau. São dois judeo-alemães que escaparam da subida ao poder dos nazistas (1933) e passaram o resto da vida nos Estados Unidos (Arendt morreu lá em 1975, Morgenthau em 1980), cuja influência perdura hoje nas ciências sociais e nos estudos de relações internacionais.
Sem cair em historicismo, pode-se dizer que uma experiência de vida comum a ambos excepcionais intelectuais os marcou para sempre. Eles viveram a derrocada de um regime democrático e aberto, num país considerado entre os mais “civilizados” e de “alta cultura” – a Alemanha de Weimar –, destruído por dentro por uma corrente política que inicialmente habitava apenas a franja do espectro político, seguidora de um inflamado orador de cervejarias em Munique. Que chegou ao poder legalmente, pelo voto.
A lição de vida desses pensadores pode ser resumida brutalmente na noção de que democracias não devem ser entendidas apenas como exercício do voto livre e direto. Ao contrário: ambos sofreram fortes ataques de críticos que os qualificaram de “não democráticos” ou até “antidemocráticos” por terem afirmado que a “política das maiorias” na moderna sociedade industrializada e de massas não garante por si a sobrevivência de um regime de liberdades individuais e estado de direito.
Tanto Arendt como Morgenthau assinalaram a importância do “will” (palavra forte no inglês e mais ainda no alemão), da vontade de lideranças políticas e da coletividade de respeitar contrabalanços ao próprio cargo, e a estrita observância da separação entre poderes, como a única fórmula de se preservar liberdade e respeito a direitos de minorias. Foram enfáticos em manifestar seus receios sobre a dissolução desses valores em sociedades abertas, especificamente a dos Estados Unidos (cuja “excepcionalidade” ou não foi sempre uma difícil questão para ambos).
Esse receio parece plenamente confirmado na era atual dos populismos empenhados no triunfo da mentira, do ódio e da manipulação cínica de legítimos anseios, turbinados por redes sociais que se transformaram em eficazes ferramentas de desinformação, incentivo ao comportamento tribal e, como se viu no caso da pandemia, na disseminação de conteúdos contrários ao conhecimento científico – o que vale tanto para os Estados Unidos como o Brasil. Onde surfaram ou continuam surfando à testa de governos democraticamente eleitos personagens de vários estilos pessoais, alguns mais, outros menos asquerosos, mas igualmente empenhados em contestar a ordem legal estabelecida (inclusive a lisura da própria eleição).
A extraordinária sofisticação intelectual de Arendt e de Morgenthau os impediu de aderir a determinismos ou “fins imutáveis” (críticos formidáveis, portanto, do marxismo). Sempre deram ênfase à ação humana e, especialmente, às consequências não intencionais quando se trata de decisões tomadas por agentes políticos. Ou seja, é muito comum que políticos não saibam o que estão fazendo, em termos do que acabam provocando com seus atos.
Parece ter sido escrita para falar de Jair Bolsonaro a epígrafe que Morgenthau escolheu para seu primeiro livro, Scientific Man Versus Power Politics, retirada de um comentário do pensador conservador Edmund Burke: “a política tem de ser entendida não pela racionalidade do ser humano, mas pela natureza humana, da qual a razão é apenas uma parte, e de jeito nenhum a mais importante”.