‘O fato narrado, evidentemente, não constitui crime’, lembrou o juiz
Essas realidades, que deveriam ser cristalinas em um regime democrático, ficaram um pouco turvas nos últimos anos no País, em função da tentativa de usar a Lava Jato para fins estranhos ao Direito. Pretendeu-se desqualificar toda e qualquer atividade político-partidária, imputando-lhe genericamente um caráter criminoso.
Felizmente, a Justiça não tem sido conivente com essas manobras. Há cada vez mais casos em que se consegue identificar a tempo a tentativa de manipulação. Foi o que se viu em recente decisão da 12.ª Vara Federal do Distrito Federal, relativa a processo penal contra 12 pessoas vinculadas ao MDB; entre elas, Michel Temer, Eduardo Cunha, Eliseu Padilha e Moreira Franco.
Segundo a denúncia apresentada em 2017 pelo então procurador-geral da República Rodrigo Janot, os acusados integravam organização criminosa que teria atuado, desde 2006, em diversos entes e órgãos públicos, como Petrobrás, Furnas, Caixa Econômica Federal, Ministério da Integração Nacional, Ministério da Agricultura, Secretaria de Aviação Civil e Câmara dos Deputados. De acordo com o Ministério Público Federal (MPF), no período de uma década, o “quadrilhão do MDB” teria operado propinas de mais de R$ 587 milhões.
Ao analisar a denúncia, o juiz Marcus Vinícius Reis Bastos afirmou que “a inicial acusatória não descreve fatos caracterizadores do ilícito que aponta. (…) A narrativa que encerra não permite concluir, sequer em tese, pela existência de uma associação de quatro ou mais pessoas estruturalmente ordenada, com divisão de tarefas, alguma forma de hierarquia e estabilidade”.
Ou seja, não é que o MPF tenha feito uma acusação sem provar. Ele nem sequer descreveu as condutas criminosas que os acusados teriam praticado. Pelo que se vê na denúncia, o crime seria a atuação na vida política do País. “O fato narrado, evidentemente, não constitui crime”, lembrou o juiz.
A denúncia não descreveu os alegados fatos criminosos, mas veio acompanhada de cerca de quatro terabytes de documentos em formato digital. “Esse procedimento evidencia, a um só tempo, abuso do direito de acusar e ausência de justa causa para a acusação. É que, ao somar às irrogações genéricas contidas na denúncia uma quantidade indiscriminada e invencível de documentos, o MPF impede os denunciados de contraditar os fatos e as provas que lhes dão supedâneo”, disse o juiz.
Além de absolver sumariamente todos os réus, o juiz alertou para a desvirtuação do processo criminal. “A denúncia apresentada, em verdade, traduz tentativa de criminalizar a atividade política”, afirmou.
Esse modo de proceder do MPF não causa prejuízo apenas às pessoas denunciadas – que são acusadas de graves crimes, mas não sabem sequer quais seriam as supostas condutas que fundamentam as acusações. “A imputação a dirigentes de partidos políticos do delito de organização criminosa sem os elementos do tipo objetivo e subjetivo provoca efeitos nocivos à democracia, entre os quais pode se mencionar a grave crise de credibilidade e de legitimação do poder político como um todo”, reconheceu o juiz.
Essa atuação do MPF, conduzindo a uma desqualificação da política e dos partidos, é inconstitucional. Como determina a Constituição, a função institucional do MP é a defesa da ordem jurídica e do regime democrático. E não é demais lembrar que, por previsão expressa dessa mesma Constituição, os partidos são elementos essenciais do sistema democrático. Atuar contra os partidos é atuar contra a democracia representativa.
É preciso investigar os crimes cometidos na atividade política, tanto para punir os responsáveis como para preservar – e não direcionar – o livre funcionamento da política. Só assim o Ministério Público cumprirá sua missão constitucional, sem interferir onde não deve.