Uma questão moral
Quem verdadeiramente preza os valores da cristandade deveria hoje estar em franca oposição a um presidente que desdenha da verdade e da vida
O presidente Jair Bolsonaro participou, no dia 9 passado, de um culto evangélico em Anápolis (GO). O evento contou com transmissão ao vivo da TV Brasil, que deveria ser pública, mas, a exemplo do que acontecia nos governos lulopetistas, tem feito serviços privados – no caso, divulgar a campanha antecipada de Bolsonaro à reeleição e privilegiar a religião do presidente. Além da violação de comezinhas normas republicanas, o evento ensejou um grosseiro atentado às normas morais, pois, como enfatizado ontem neste espaço (ver o editorial O ‘evangelho’ segundo Bolsonaro), o presidente mentiu do início ao fim de seu discurso, com a agravante de que o fez num templo religioso.
A exploração particular da TV estatal deve ser tratada no âmbito da Justiça. Já a mendacidade de Bolsonaro, em franco escárnio dos fundamentos da religião, está no terreno da moral, que é questão de consciência pessoal. Se o presidente consegue dormir tranquilo depois de mentir descaradamente, como fez naquele templo religioso em Anápolis, é questão para ser estudada por psiquiatras. Mas espanta que Bolsonaro, mesmo violando mandamentos religiosos de forma tão explícita, ainda tenha apoio entre aqueles que prezam esses mandamentos como pilares de sua fé e de seu comportamento em sociedade.
Como se sabe, os evangélicos formam uma parte importante da base de apoio de Bolsonaro. Consta que, no segundo turno da eleição de 2018, o presidente teve nada menos que 70% dos votos dos evangélicos. Isso significa que Bolsonaro, de algum modo, soube capitalizar as expectativas dessa parte do eleitorado, cujo tamanho cresce exponencialmente – hoje os evangélicos são 35% do total.
Bolsonaro tornou-se evangélico em 2016 e incorporou em seu discurso político a agenda de costumes tão cara aos evangélicos. Diferentemente de outros políticos – que buscam aproximar-se desse eleitorado e de seus líderes religiosos sem contudo se comprometer totalmente com essa agenda –, Bolsonaro apresenta-se como campeão inquestionável desses valores.
Assim, Bolsonaro fez sua campanha eleitoral enfatizando os fundamentos conservadores da família cristã tradicional, posicionando-se sem ambiguidades contra o aborto, contra as drogas e contra o ensino de questões sobre sexualidade e gênero nas escolas – tudo o que se vincula ao PT e aos “comunistas”. Obteve o voto majoritário dos evangélicos quando estes o identificaram como o único capaz de deter os petistas.
Nos palanques, Bolsonaro prometia proteger “a inocência de nossas crianças”, ao mesmo tempo que falava palavrões e ofendia seus desafetos em público, além de defender a tortura e louvar a violência. Esse comportamento imoral e de ocasião, fosse como fosse, foi insuficiente para fazer os evangélicos mudarem de ideia em 2018, tamanha a ojeriza ao PT. No evento religioso de Anápolis, um pastor chegou a dizer a Bolsonaro que “foi Deus quem te colocou na Presidência”.
Ao contrário do que parece, contudo, o apoio evangélico a Bolsonaro vem diminuindo. O mais recente levantamento da XP/Ipespe mostra que a desaprovação ao governo de Bolsonaro entre os evangélicos cresceu de 31% para 38% entre maio e junho e está em seu ponto mais alto em um ano. Já a aprovação caiu de 44% para 34% no período. Ainda é o grupo religioso que mais apoia Bolsonaro, mas a fé no presidente parece ter limites, e muitos já começam a vê-lo como falso profeta.
O modo delinquente como o governo de Bolsonaro lidou com a pandemia de covid-19 pode ser uma explicação para essa erosão. Mais de 60% dos evangélicos pentecostais, segundo o Censo do IBGE, recebem menos de um salário mínimo por mês. São maioria entre os que mais sofreram com a doença, e não é por acaso que vários pastores evangélicos que antes apoiavam de forma entusiasmada o presidente hoje vêm expressando algum descontentamento.
Mas ainda é pouco. Quem verdadeiramente preza os valores da cristandade – sobretudo a verdade e a vida – deveria hoje estar em franca oposição a um presidente que desdenha desses valores como nenhum outro.