A grande obra de Bolsonaro
Pesquisa do instituto Ipec mostra que o presidente está se esforçando com denodo para viabilizar a volta de Lula da Silva
Felizmente ainda faltam 16 meses para a votação, e nem se sabe bem quem serão os candidatos – salvo Lula da Silva e Bolsonaro, que nunca descem do palanque. Portanto, não é possível cravar que esse cenário tétrico se manterá.
Mas a pesquisa mostra um fato cristalino: é Bolsonaro quem está fortalecendo a candidatura de Lula da Silva. Quando se observa o potencial de voto, saltou de 50% para 61%, de fevereiro para cá, a parcela de entrevistados que dizem que poderiam votar ou votariam com certeza em Lula. Já os que dizem que não votariam em Lula de jeito nenhum passaram de 44% para 36%.
Com Bolsonaro, o cenário se inverte. Saltou de 56% para 62% o porcentual dos que dizem que não votariam no presidente de jeito nenhum, enquanto a parcela dos que se dispõem a votar nele caiu de 38% para 33%.
Não é preciso ser estatístico para observar que Lula da Silva herdou parte do potencial de voto de Bolsonaro, e sem fazer força. O líder de um partido que, quando esteve no poder, se envolveu em grossas traficâncias, provocou inédita crise econômica e foi pivô da profunda cisão que a sociedade brasileira experimenta há anos, o que em qualquer lugar civilizado resultaria em ostracismo político, hoje surge como grande favorito a retomar a Presidência. Eis a grande obra de Bolsonaro.
O presidente está se esforçando com denodo para viabilizar a volta de Lula da Silva. Depois de dois anos e meio de absoluta inércia administrativa, em que passou mais tempo em palanques e se divertindo em praias e passeios, enquanto gastava energia sabotando os esforços para combater a pandemia de covid-19, criando crises com o Judiciário, o Congresso e os militares e investindo no isolamento do Brasil no mundo, o presidente colhe os frutos de seu empenho em arruinar o País: para cada vez mais eleitores, o retorno de Lula é menos danoso do que a continuidade de Bolsonaro.
Se não bastasse a catástrofe administrativa, Bolsonaro, eleito com a tonitruante promessa de acabar com a corrupção deslavada da era lulopetista, acumula escândalos de fazer inveja à tigrada de antanho.
O presidente brada que não houve um único caso de corrupção em seu governo, mas um ministro sofreu busca e apreensão em inquérito sobre suposto favorecimento ao contrabando de madeira, outro foi indiciado pela Polícia Federal sob suspeita de chefiar esquema de candidaturas laranjas e agora há fortes indícios de que o Ministério da Saúde foi tomado por saúvas interessadas em faturar com vacinas e cloroquina.
E aqui nem se fala de rachadinhas, uso de dinheiro público em campanha eleitoral fora de época e aparelhamento explícito da máquina do Estado para fins privados, marcas da nefasta era bolsonarista.
A tudo isso se soma a relação de vassalagem de Bolsonaro com o Centrão, que culminou com a farta distribuição de verbas do Orçamento longe dos controles democráticos – que, conforme concluiu o Tribunal de Contas da União, “não reflete os princípios constitucionais, as regras de transparência e a noção de accountability”.
Diante da sangria de popularidade e pressionado pela reação das instituições, Bolsonaro, em vez de se emendar, decidiu ultrajar ainda mais os brasileiros. No momento em que vários países que já haviam controlado a pandemia de covid-19 voltam a falar em medidas restritivas ante a contaminação por novas cepas, Bolsonaro aparece em público tirando a máscara de uma criança, escarnecendo daquela que é a maneira mais barata de conter a doença e, assim, contribuindo para piorar um quadro que já é catastrófico no Brasil.
Não é à toa que, segundo a pesquisa do Ipec, Bolsonaro perde de Lula inclusive entre os evangélicos, apesar de todas as juras do presidente a essa parcela do eleitorado. Ante a razia bolsonarista, até o diabo parece charmoso.