Poder do presidente da Câmara nos pedidos de impedimento não é absoluto, segundo especialistas, e Supremo poderia agir
Atualmente estão represados com o presidente da Câmara, deputado federal Arthur Lira (PP-AL), mais de cem pedidos de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
No último dia 30, foi protocolado o chamado superpedido de impeachment por partidos de oposição e ex-aliados de Bolsonaro, com 23 tipos de acusações contra o mandatário. No dia seguinte, porém, Lira disse não haver materialidade e disposição política no país para o impeachment do presidente.
Também no último dia 1º, o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad (PT-SP) e o deputado Rui Falcão (PT-SP) apresentaram pedido ao STF para que a corte determine que Lira ao menos examine o pedido de impedimento contra Bolsonaro protocolado por eles em maio de 2020.
“E esse assunto, já estou cansado de dizer e repetir. Eu não posso fazer esse impeachment sozinho, erra quem pensa que a responsabilidade é só minha. Ela é uma somatória de características que não se configuram”, afirmou o presidente da Câmara.
Especialistas ouvidos pela Folha divergem quanto à natureza jurídica da etapa que cabe ao presidente da Câmara nesse processo, mas são unânimes em afirmar que Lira não tem poder absoluto sobre os pedidos de impeachment.
Além disso, dizem esses especialistas, a atitude de ficar em cima do muro, evitando assim rejeitar ou dar seguimento ao processo, pode ser combatida por meio de uma ação no STF (Supremo Tribunal Federal).
Entenda como a lei trata o tema das atribuições do presidente da Câmara nos requerimentos de impeachment e como constitucionalistas vêem a possibilidade de o STF intervir no represamento dos pedidos que se avolumam na Casa.
O que diz a legislação? Segundo a Lei 1.079 de 1950, conhecida como Lei do Impeachment, o presidente da Câmara é a primeira autoridade a receber os requerimentos de impedimento do presidente da República. A autoridade máxima da Câmara pode dar seguimento ao pedido, determinando o envio do caso a uma comissão especial, ou rejeitar a petição. Nessa última hipótese, cabe recurso ao plenário da Câmara.
A lei prevê que cabe ao presidente da Câmara examinar o preenchimento das seguintes condições: protocolo de denúncia assinada com firma reconhecida, apresentação de documentos que comprovem a acusação, ou de declaração de impossibilidade de apresentá-los, com a indicação do local onde possam ser encontrados, e oferecimento de uma lista de testemunhas, nos crimes em que houver prova testemunhal.
Há prazo para o presidente da Câmara decidir sobre os processos de impeachment? O diretor da Faculdade de Direito da USP, Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto, diz que o texto da Lei do Impeachment fixa um prazo para que o presidente da Câmara analise os pedidos.
A baliza temporal está no artigo 19 da lei, ao estabelecer que “recebida a denúncia, será lida no expediente da sessão seguinte e despachada a uma comissão especial eleita”, segundo Marques Neto.
Porém o atual Regimento Interno da Câmara dos Deputados, que entrou em vigor em 1989, criou uma etapa de verificação de requisitos pelo presidente da Câmara, mas sem definir um prazo para que ela seja concluída, conforme o artigo 218, parágrafo 2º, desse texto legal.
Qual a base legal para que os presidentes da Câmara segurem os pedidos de impeachment por prazo indeterminado? De acordo com o diretor da USP, a fase de análise sem limite de tempo, descrita no artigo 218 do Regimento Interno da Câmara, é que é invocada por presidentes da Câmara para represar os processos de impeachment.
O STF pode atuar em relação ao represamento dos pedidos de impeachment pelo presidente da Câmara? O STF pode obrigar o presidente da Câmara dos Deputados a tomar uma decisão sobre pedidos de impeachment contra o presidente da República caso haja demora excessiva para analisar os requerimentos, segundo especialistas ouvidos pela Folha.
Para Marques Neto, o ato de apreciar os requerimentos de impedimento tem natureza administrativa, e então deve ser observada a legislação específica sobre os processos administrativos, a Lei 9.784 de 1999.
Esse texto legal, em seu artigo 49, determina o prazo de 30 dias para a tomada de decisões, prorrogável por igual período desde que haja motivação expressa.
De acordo com o diretor da USP, se essa regra não for respeitada pelo presidente da Câmara, é possível acionar o STF contra a omissão por meio de uma ação que no jargão técnico recebe o nome de mandado de segurança. “O Supremo poderia obrigar o presidente da Câmara a decidir. A normativa é muito clara.”
A professora de direito constitucional Carolina Cyrillo, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), também afirma que o STF pode ser acionado contra a inércia do presidente da Câmara, apesar de ter um entendimento diferente do do diretor da USP quanto à etapa que cabe atualmente a Lira.
Segundo a especialista, a fase de recebimento da denúncia de impeachment tem natureza penal, e neste campo “receber a denúncia é algo técnico que demanda uma discricionariedade do juiz em verificar a ocorrência de algum indício”.
Essa conceituação, porém, não permite ao presidente da Câmara deixar os processos parados por tempo excessivo, de acordo com a professora da UFRJ.
“É um superpoder, mas o presidente da Câmara não pode simplesmente engavetar, ele tem que, em um tempo razoável, receber ou negar. A Constituição diz que os processos devem ser decididos em um prazo razoável. Pode ser 30 dias ou 45 dias, geralmente isso é entendido como prazo razoável. Mas como isso é uma norma aberta, fica difícil precisar. Já vi o STF dar dez dias e dizer que está bem razoável”, afirma.
vai além e diz que a omissão do presidente da Câmara pode até configurar o crime de prevaricação previsto no artigo 319 do Código Penal.
Esse delito ocorre quando um agente público deixa de agir conforme os princípios da administração para satisfazer interesse ou sentimento pessoal. “O presidente da Câmara é obrigado a decidir, sob pena de cometer ilícito, em tese, criminal, de prevaricação, pois ele tem o dever de decidir.”
“Não pode ficar como está hoje, com os processos parados em seu gabinete. Há pedidos que estão lá há quatro meses, seis meses e um ano, o que já estourou qualquer prazo razoável.”
Também favorável à possibilidade de atuação do STF no caso, a professora de direito constitucional Vera Karam de Chueiri, da UFPR (Universidade Federal do Paraná), entende que não cabe ao presidente da Câmara fazer um juízo político ou de conveniência ao analisar os pedidos de impeachment.
“Cabe a ele tão somente ver se estão presentes os requisitos formais. O presidente da Câmara está simplesmente sentado em cima dos pedidos sem fazer o que constitucionalmente é dado a ele fazer.”
“Se ele se omite, a alternativa judicial não necessariamente significa extrapolar o limite entre a função jurisdicional e a função legislativa. Aí não se está em uma situação em que o Judiciário vai açodadamente invadir o âmbito das competências do Poder Legislativo.”
A recente decisão do Supremo que determinou ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, a instalação da CPI da Covid serve como precedente para eventual atuação do tribunal nos pedidos de impeachment engavetados por Lira ou ainda sem análise? Marques Neto diz que essa tese da possibilidade de ação do STF em caso de inércia de presidente de Casa Legislativa ganhou mais força com a decisão do tribunal que determinou em abril que o Senado instalasse a CPI da Covid.
Nesse julgamento, o STF entendeu que o Senado não podia se omitir em relação ao fato de terem sido preenchidos os requisitos necessários para a abertura da comissão inquérito, que eram a assinatura de ao menos 27 senadores, a indicação de fato determinado a ser investigado e a definição de prazo de duração.
Segundo o constitucionalista, “vale nos pedidos de impeachment o mesmo que o STF decidiu no caso da CPI da Covid. Aceitar a discricionariedade ampla do presidente da Câmara em não decidir, importaria em dar a ele um poder de conferir imunidade de responsabilidade ao presidente, o que indiretamente viola os artigos 85 e 5º, inciso 78, da Constituição Federal”.
O STF pode obrigar o presidente da Câmara a aceitar ou rejeitar os pedidos de impeachment? Os constitucionalistas ouvidos pela Folha entendem que o limite para o STF é o de determinar que o presidente da Câmara somente avalie os pedidos de impeachment e decida sobre cada um deles.
A corte, segundo esses especialistas, não pode avançar no sentido de obrigar que haja inclinação para um dos lados, de negar ou dar seguimento ao pedido.
Segundo Odete Medauar, professora aposentada de direito administrativo da Faculdade de Direito da USP, “há um problema de constitucionalidade no silêncio do presidente da Câmara”. “Ele é obrigado a dar uma resposta. Mas o Supremo não pode dizer qual deve ser o caminho, aceitar ou rejeitar, porque existe um campo em que cada poder toma suas decisões, e um poder não pode interferir no outro.”
O CAMINHO DO IMPEACHMENT
- O presidente da Câmara dos Deputados é o responsável por analisar pedidos de impeachment do presidente da República e encaminhá-los
- O atual presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), é aliado de Jair Bolsonaro. Ele pode decidir sozinho o destino dos pedidos e não tem prazo para fazê-lo
- Nos casos encaminhados, o mérito da denúncia deve ser analisado por uma comissão especial e depois pelo plenário da Câmara. São necessários os votos de pelo menos 342 dos 513 deputados para autorizar o Senado a abrir o processo
- Iniciado o processo pelo Senado, o presidente é afastado do cargo até a conclusão do julgamento e é substituído pelo vice. Se for condenado por pelo menos 54 dos 81 senadores, perde o mandato
- Os sete presidentes eleitos após a redemocratização do país foram alvo de pedidos de impeachment. Dois foram processados e afastados: Fernando Collor (1992), que renunciou antes da decisão final do Senado, e Dilma Rousseff (2016)