Sequelas do vírus ou morte de parentes fizeram com que resistentes ao imunizante mudassem de ideia; ciência prova que produtos são seguros e eficazes
Primeiro, eles recusaram a vacina contra a covid-19, movidos por fake news, medo ou desconfiança. Depois, se arrependeram, viram parentes morrer ou sentiram na pele os efeitos agressivos do vírus. Na linha de frente, médicos relatam histórias parecidas, em alguns casos sem segunda chance, dessa minoria de brasileiros que hesitou em se proteger. O que a ciência previa é possível perceber na prática: o imunizante é a melhor arma contra as formas graves da doença, que fez 577 mil vítimas no País em um ano e meio.
A técnica de enfermagem Joana (nome fictício), de 58 anos, precisou buscar ajuda psicológica para conviver com o remorso de ter negado a vacina quando ficou disponível para profissionais de saúde de Sorocaba, no interior paulista, em fevereiro. Dois meses depois, ela contraiu a doença e ficou 28 dias internada. Já o marido, de 61 anos, não resistiu.
Internada na capital à época, porque haviam acabado as vagas de UTI na sua cidade, Joana nem pôde se despedir do companheiro de 40 anos. “Foi o mais triste. Não tive nem como pedir perdão por não ter me vacinado e, talvez, evitado que ele pegasse essa doença maldita”, conta. “Meus filhos me apoiaram e me apoiam, mas aqui dentro me sinto culpada, sinto um remorso e também uma revolta, pois ele poderia ter sido vacinado se a vacina chegasse antes”, afirma.
Obesa, hipertensa e diabética, Joana foi abordada pelos colegas para tomar a vacina, mas diz ter ficado com medo de reações. “Sou da área de saúde e não sou negacionista”, afirma. “É que eu já estava com a saúde abalada e fiquei com medo dos efeitos colaterais, de agravar minhas condições de saúde”, reconhece ela, que também vê influência de fake news na escolha. A desinformação tem sido um dos principais desafios da pandemia – até o presidente Jair Bolsonaro foi um dos responsáveis por espalhar mensagens enganosas sobre a covid.
Pesquisas e especialistas apontam que as vacinas anticovid se mostram seguras, os efeitos colaterais são raros e os benefícios do imunizante superam eventuais riscos. Em caso de dúvidas, é preciso buscar orientação médica.
O marido de Joana, que não tinha comorbidades, morreu duas semanas antes da data em que poderia se vacinar, pelo calendário paulista. Ela e os dois filhos adultos do casal se vacinaram. A técnica de Enfermagem ainda enfrenta sequelas do coronavírus, como dores de cabeça constantes e fraqueza muscular. “O pior é a dor na consciência”, afirma.
‘Senti muita falta de ar, tontura. Tive medo’
Quando os sintomas apareceram de forma leve, a autônoma Cristina (nome fictício), de 45 anos, deu pouca importância. Parecia gripe, relata. Com o passar dos dias, a falta de ar a levou ao médico. “O dia que recebi o diagnóstico foi um momento muito difícil. A doença é grave e já havia progredido. Eu mal conseguia falar”, lembra.
Hipertensa, a soteropolitana já podia se vacinar naquela altura de maio, por causa da comorbidade. Ela, no entanto, desconfiava da eficácia do imunizante e ouvia falar sobre infecções entre vacinados. Entre as principais vantagens da vacina, mostram estudos, está a redução de casos graves da covid.
“Eu me arrependo muito”, admite Cristina, que chegou a ter 50% dos pulmões comprometidos e ficou 15 dias internada. “Hoje entendo que, vacinada, poderia não ter sofrido uma forma mais grave. Os especialistas dizem que a vacina é segura, importante para o coletivo. A gente tem de confiar”, conclui ela, agora protegida com as duas doses.
Antes, o funcionário público Ricardo (nome fictício), de São Paulo, via na campanha de vacinas “uma forma de comércio” e rechaçava tomar a injeção. Sua opinião só começou a mudar em março. O pai, de 78 anos, ficou com 50% dos pulmões afetados, passou por quatro hospitais, e morreu por causa da covid.
Hoje, Ricardo tenta se reaproximar da família, de sete irmãos. Houve racha por causa das divergências sobre a pandemia e a importância da vacina. “Não vejo alguns irmãos desde março do ano passado”, lamenta ele, de 42 anos. Segundo o servidor público, o pai não tomou o imunizante porque ainda não havia chegado a sua vez. Colegas de trabalho, porém, relataram que Ricardo falava em não permitir que os parentes tomassem a dose.
Sobre a influência de disputas políticas na sua decisão, ele evita fazer relação direta. “Cada um tem sua opinião. Concordo com o presidente em algumas coisas; em outras, não. Acho que ele também vai acabar se vacinando”, aposta.
A mudança de atitude de Ricardo se confirmou na semana passada, quando tomou a 1ª dose da Coronavac – um dos principais alvos de fake news, principalmente pela origem chinesa do produto. “Essa atitude vale mais do que muitas palavras. Eu era contra, mas tomei a vacina”, destaca. Já Bolsonaro, que poderia ter se imunizado desde abril, diz que ainda não procurou a vacina.
‘Ela disse que precisou ver a cara da morte para entender isso’
Médicos que atuam na linha de frente têm ainda frescos na memória os casos de pacientes que refutaram a vacina, tiveram a doença e depois se mostraram arrependidos. Dois casos marcaram o infectologista Alexandre Naime, do Hospital das Clínicas de Botucatu, interior de São Paulo. O primeiro é de um senhor de 73 anos, contaminado por desinformação.
“Ele tinha sobrepeso, consumia álcool, mas se deixava levar pelas fake news. Mantinha uma página muito movimentada no Facebook onde compartilhava postagens se referindo à Coronavac como aquela vacina chinesa do (governador paulista João) Doria”, diz Naime. Estudo da Fiocruz divulgado esta semana, com base na análise de dados de 60 milhões de brasileiros, revela taxa de efetividade superior a 70% da Coronavac contra internações e mortes pela covid.
O idoso citado por Naime, que frequentava botecos e canchas de bocha, acabou pegando a covid e a esposa também se infectou. “Ela era dez anos mais jovem que ele, usava máscara direitinho e queria ser vacinada. Além de mais jovem, a senhora não tinha comorbidades. No entanto, o caso dela complicou, internamos no HC (Hospital das Clínicas de Botucatu), fizemos o possível, mas ela foi a óbito.” Naime conta que, nos 20 dias em que ela ficou internada, o marido manifestou profundo arrependimento. “Na hora do desespero abriu o coração. Se sentia culpado, entrou em episódio depressivo agudo, perdeu dez quilos, está com psiquiatra. Depois que ela foi a óbito, pediu para ser vacinado. Deu para sentir, nesse caso, o quanto as fake news foram danosas”, diz.
No outro caso, uma senhora de 56 anos – obesa, diabética e hipertensa – não tomou o imunizante quando teve oportunidade. “Não era só medo dos eventos adversos, mas também por influência das fake news. Dizia que preferia pegar covid do que tomar vacina.”
O médico conta que, um mês após a alta, a paciente usou a rede social para dizer que a vacina valia a pena. “Ela disse que precisou ver a cara da morte para entender isso.”
Mas para Naime, diferentemente dos Estados Unidos e de algumas partes da Europa, a resistência à vacina é mais pontual. “Acredito que é porque o programa nacional de imunização está no ‘DNA’ do brasileiro. E, apesar de toda propaganda feita contra algumas vacinas, como a Coronavac, a crença na eficácia da vacina na memória dos brasileiros é maior”, afirma.
Pesquisa Datafolha, de julho, mostra que a adesão da população à vacina anticovid atingiu nível recorde: 94%. O balanço considera quem já tinha se vacinado e quem manifestou intenção de se vacinar.
Leandro Fonseca, também médico da linha de frente, se deparou com vários casos semelhantes, mas um deles o marcou. “Um senhor, que já tinha certa idade, deixou de se vacinar e pagou com a vida por isso. Era uma família de pessoas estudadas, mas dividida politicamente. Ele disse que não iria tomar a vacina da China e acabou pegando o coronavírus”, detalha.
Fonseca, de Sorocaba, diz que o paciente foi internado e piorou. “Quando estava para ser intubado, me perguntou se teria evitado a intubação caso tivesse tomado a vacina. Era visível o arrependimento. Eu não poderia ter dito outra coisa: muitos pacientes nas condições dele, mas vacinados, não precisaram ser intubados”, conta. “É triste ver a quantidade de pessoas que, por ignorância ou questões políticas, abrem mão de algo tão essencial quanto preservar a vida.”