Um Executivo que ignora o Legislativo
Em vez de realizar o trabalho de coordenação política junto ao Congresso, tão próprio do regime presidencialista, Jair Bolsonaro opta por atalho falso
(Editorial do Estadão em 05/09/2021)
Previsto na Constituição, o poder de editar medida provisória tem contornos precisos. “Em caso de relevância e urgência, o presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional”, diz o art. 62.
Medida provisória entra em vigor imediatamente e, caso não seja convertida em lei pelo Congresso no prazo máximo de 120 dias, perde sua eficácia. Não é, portanto, ato propício para estabelecer novo marco jurídico para determinado setor econômico. Isso exige estudo, debate e ponderação.
O poder previsto no art. 62 da Constituição não é uma autorização para o Executivo substituir o Legislativo, tampouco para forçá-lo a decidir sobre determinado assunto. Medida provisória é instrumento para enfrentar situações específicas, que sejam relevantes e urgentes.
A pretensão de criar marcos jurídicos por simples ato do Executivo é incompatível com a segurança jurídica. Além disso, é uma ilusão pensar que uma canetada do presidente da República, alterando de supetão a regulação de um setor da economia, seja capaz de promover a confiança e o dinamismo dos negócios.
Como se não bastasse o abuso de poder na edição da MP 1.065/21, o Palácio do Planalto ignorou o trabalho do Congresso a respeito do tema. Desde 2018, o Senado estuda um novo marco jurídico para o setor ferroviário, por meio do Projeto de Lei (PL) 261/2018.
De autoria do senador José Serra (PSDB-SP), o PL 261/2018 dispõe, entre outros tópicos, sobre a exploração indireta pela União do transporte ferroviário em infraestruturas de propriedade privada, autoriza a autorregulação ferroviária e disciplina o trânsito e o transporte ferroviário. A proposta do projeto é a adoção do sistema de licença para a exploração das ferrovias, e não mais o de concessão.
Como se vê, são assuntos complexos, que exigem especial cuidado. Depois de três anos de estudo e debate, o PL 261/2018 foi considerado, no mês passado, pronto para ser votado pelo plenário do Senado. Eis que, então, o Palácio do Planalto edita medida provisória sobre o tema.
Perante tal atitude, senadores da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado pediram ao presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), que devolva a MP 1.065/21 ao Executivo federal. A devolução é um meio de o Legislativo retirar, de imediato, a eficácia de medida provisória que, de forma patente, não preenche os requisitos constitucionais.
Em junho de 2020, o então presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), devolveu, por evidente inconstitucionalidade, a MP 979/2020, que autorizava a nomeação de reitores de universidades públicas e institutos federais sem consulta prévia ou lista tríplice.
A quem possa pensar que esse modo de atuar do presidente Jair Bolsonaro revelaria, ao menos, a boa disposição de enfrentar determinado assunto, vale lembrar que, a rigor, a edição abusiva de medida provisória expõe uma grave omissão por parte do Executivo. Em vez de realizar o trabalho de coordenação política no Congresso – tão próprio de um regime presidencialista –, Jair Bolsonaro opta por um atalho fácil e falso. Num Estado Democrático de Direito, assuntos complexos, tanto do ponto de vista técnico quanto do político, não são resolvidos por mera canetada.
Nessa omissão, vislumbra-se mais do que simples desídia em relação aos deveres presidenciais. Nota-se um modo autoritário de exercer o poder, como se a Constituição autorizasse o presidente da República a ignorar o Congresso. Ainda que Jair Bolsonaro não queira, o regime democrático exige a política.