Juliana Vieira dos Santos, coordenadora jurídica da Rede Liberdade, sócia do escritório Rubens Naves Santos Jr. Advogados, mestre em Direito pela Harvard Law School e doutora em Teoria do Estado pela Universidade de São Paulo. Conselheira da Associação de Advogados de São Paulo – AASP
06 de setembro de 2021 | 06h30
Várias peças vão se encaixando para formar o quebra-cabeça que compõe o governo autocrata de Jair Bolsonaro e revelar uma democracia sob risco evidente.
Algumas delas não são novidade para ninguém, como as ameaças geradas pelos motes golpistas do presidente, se consolidando com a chamada em torno das manifestações do próximo dia 7 de Setembro.
Além da cafonice do governo convocar uma manifestação a seu favor, há a tentativa de construir um sentimento de medo na população (fake news sobre desabastecimento e real news sobre uma população cada vez mais armada), uma tentativa de demonstração de força de um governo que derrete em popularidade, imerso em denúncias de corrupção (vacinas, rachadinha, mansões) e inepto em todos os aspectos, principalmente no controle da economia (inflação galopante, pedalada com precatórios, combustível, eletricidade, fome).
A falta permanente de diálogo, a intransigência estúpida e o descolamento da realidade surpreendem só os que votaram em Margaret Thatcher e perceberam que levaram Mussolini. O caso emblemático da ameaça de saída do Banco do Brasil e da Caixa da Febraban mostra isso. Bolsonaro está trucando também o empresariado e mostrando que é coerente: não aceita críticas de ninguém. O agronegócio que se descola da política anti-indígena e anti-Amazônia, que prejudica a capacidade de exportação do país, é outro exemplo.
A mais recente peça a ser encaixada nesse tabuleiro é a sanção, com vetos parciais, da Lei no 14.197, que revoga a Lei de Segurança Nacional (LSN) e adiciona ao Código Penal uma parte especial relativa aos crimes contra o Estado Democrático de Direito.
Ao sancionar essa lei, Bolsonaro promoveu três vetos principais: manteve a mesma pena para o cidadão comum e para o militar que comete esses crimes (desconsiderando a gravidade que significa ter alguém formado para o uso da força no cometimento de crimes contra a ordem democrática); o aumento de pena para cometimento desses crimes com “violência ou grave ameaça exercidas com emprego de arma de fogo” (como se tentar tomar o poder com fuzis ou com tacapes fosse a mesma coisa); e também o crime que tipificava a conduta de impedir, mediante violência ou grave ameaça, o livre e pacífico exercício de manifestação.
Esses vetos estão diretamente conectados à tentativa de cooptação de militares para apoiar suas ideias golpistas e para fortalecer grupos armados que intimidam manifestações de pessoas que defendem seu impeachment ou direitos sociais em geral.
A justificativa para vetar esses dispositivos não se sustenta num ambiente democrático. No argumento do presidente, trata-se de “tentativa de impedir as manifestações de pensamento emanadas de grupos mais conservadores”. Ora, numa democracia, a todos os grupos, de qualquer natureza política, ideológica e partidária, é dado o direito de manifestação, desde que ela seja pacífica e não atente contra a própria democracia (que aceita muita coisa, mas não aceita desaforo) ou contra valores insculpidos na Constituição.
Mas o que o veto revela é que o objetivo não é proteger liberdades, mas tentar normalizar o processo de ruptura democrática.
A incitação ao golpe promovida por membros de forças de segurança, com a politização crescente das polícias e das Forças Armadas, com o devido estímulo do presidente, é uma peça fundamental ainda a ser encaixada nesse tabuleiro.
E se não devemos nos impressionar com a quantidade de gente nas ruas na próxima terça-feira – as pesquisas reafirmam a total insatisfação com o governo – mais do que nunca há razões para que nos preocupemos com a coalização de autoritários que vem se formando, a partir do alinhamento das forças de segurança a Bolsonaro.
Não nos esqueçamos que, nem completados seis meses de mandato, milicianos digitais promoviam manifestações em mais de uma centena de cidades em ataque organizado contra o Congresso. Semana sim, outra também, o presidente ou alguns dos seus aliados destilam ódio direto e declarado a ministros do Supremo. Há dois anos, o presidente não se cansa de liderar a toada contra a legalidade democrática (sob o bizarro argumento da liberdade de expressão).
E antes fosse mero jogo retórico. A escalada golpista com uso de militares e forças de segurança já arrasou o campo, já matou milhares de pessoas negras nas comunidades, já violentou povos indígenas, e a truculência do autocrata do Planalto já está sendo sentido nos prédios da Faria Lima. Não à toa parte considerável do empresariado parece já ter desembarcado do governo.
O fato é que vamos para o 7 de Setembro angustiados, mas com uma certeza. É tempo de punir exemplarmente os antidemocratas – e a nova lei dos crimes contra a democracia, apesar dos vetos, prevê punições severas para delitos como a tentativa de subverter as instituições vigentes ou tentar um golpe de Estado. Sem esquecer que a Constituição de 1988 estabeleceu como “crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis e militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático”. Era uma reação ao regime autoritário instalado em 1964 e continua a ser uma reação a qualquer ato ou intenção autoritária, como a que assistimos quase diariamente nas palavras e gestos do presidente.
Sem aproveitar a nova lei para riscar o chão de forma definitiva, o mosaico que se formará nesse quebra-cabeça é o horror, a explosão disforme de uma Guernica a mostrar um país esfacelado. Se ainda há instituições, a hora de agir é agora.