Investigadas por mais de um órgão de controle, as emendas parlamentares devem receber ainda mais dinheiro no Orçamento de 2022, ano de eleição. Deputados e senadores articulam uma espécie de “trem da alegria”, com o objetivo de aumentar os valores que podem receber do governo para enviar a seus redutos eleitorais.
Essa distribuição ocorre por dois caminhos: a chamada emenda de relator (RP9), âncora do orçamento secreto, e por meio da ampliação das transferências tipo “cheque em branco”, nas quais prefeitos e governadores podem usar o dinheiro livremente, sem precisar prestar contas ao Tribunal de Contas da União (TCU).
Como o Estadão mostrou nesta quarta-feira, 27, parlamentares querem usar a possibilidade de estouro do teto de gastos – regra que impede o governo de aumentar despesas além da inflação – para destinar R$ 16 bilhões às suas bases, por meio de emendas de relator. Por esse modelo, o dinheiro é enviado a prefeituras e governos estaduais indicados por congressistas sem critérios claros. O formato de repasse, criado em 2019 pelo governo Bolsonaro, permite o “toma lá, dá cá”, uma vez que o Planalto troca emendas por apoio no Congresso.
Em outra frente, deputados e senadores pretendem ampliar o valor enviado a seus redutos por intermédio das chamadas transferências especiais, batizadas no Congresso de “emendas cheque em branco” ou “Pix orçamentário”. O mecanismo é mais uma forma nebulosa de parlamentares destinarem recursos públicos para suas bases. A prática permite que as emendas sejam aprovadas no Orçamento da União sem detalhamento de como o dinheiro será aplicado.
Por esse modelo, as emendas são aprovadas no Orçamento da União sem detalhamento de como o recurso será aplicado, seja na construção de uma praça ou na compra de uma ambulância para o hospital da cidade. Assim, prefeitos e governadores podem gastar livremente onde bem entenderem, sem fiscalização federal, diferentemente do que acontece com outros formatos de emendas.
Limite. A transferência direta só é permitida nas emendas individuais, limitadas a R$ 16 milhões por parlamentar. Uma proposta aprovada em julho na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), vetada depois por Bolsonaro, autoriza que o mecanismo também seja usado nas emendas de bancadas.
Defensores da modalidade argumentam que a transferência direta torna o repasse dos recursos mais rápido, enquanto as demais formas de emendas levam meses ou até anos para chegar no caixa dos municípios. “Transferências especiais eliminam a burocracia, e a agilidade acontece”, afirmou o deputado Celso Maldaner (MDB-SC).
Além da derrubada do veto, parlamentares devem aprovar uma medida que permite fracionar essas emendas. Com isso, os congressistas terão mais R$ 5,7 bilhões para incluir no “cheque em branco” que pretendem enviar a prefeitos e governadores aliados.
A possibilidade de ampliar as transferências diretas preocupa técnicos do Congresso, que recomendaram aos parlamentares a manutenção do veto de Bolsonaro. O secretário especial da Presidência Bruno Grossi também já demonstrou preocupação. “Infelizmente, a gente teve um fator não desejável nesses processos, que foi a perda de transparência em torno das emendas individuais por meio das transferências especiais”, disse Grossi, em evento do TCU no início do mês.
Os dois movimentos – o que aumenta o montante de emendas e o que as torna menos transparentes – ocorrem no momento em que o próprio governo admite a existência de um “feirão de emendas” no Congresso. Em audiência na Câmara no dia 6, o ministro da Controladoria-Geral da União (CGU), Wagner Rosário, afirmou “não ter dúvida” de que há corrupção envolvendo recursos federais indicados por parlamentares. O Estadão revelou que pelo menos três deputados e um senador são investigados pela Polícia Federal sob suspeita de cobrar comissão para destinar recursos a uma determinada prefeitura.
A própria CGU apontou no mês passado sobrepreço de R$ 142 milhões em contratos firmados por meio de emendas de relator para a compra de equipamentos agrícolas. A auditoria foi instaurada após o Estadão revelar o esquema, montado por Bolsonaro para aumentar sua base no Congresso. O caso foi batizado de “tratoraço” por envolver a compra de tratores.
A intenção de ampliar as emendas de relator no Orçamento de 2022 também contraria recomendação do Tribunal de Contas de União (TCU), órgão responsável por fiscalizar as contas do governo. Na análise das prestações relativas às contas de 2020, em junho, o plenário do tribunal apontou irregularidades neste formato de repasse e recomendou ao Palácio do Planalto e ao Ministério da Economia que seja dada ampla publicidade às informações relacionadas às indicações de parlamentares.
Precatórios. Com a chave do cofre das emendas de relator, o presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), tem condicionado a ampliação dos recursos à aprovação da PEC dos Precatórios, que limita o pagamento de dívidas judiciais e altera a forma de cálculo do teto de gastos. A intenção é abrir espaço no Orçamento para o novo programa social do governo, o Auxílio Brasil.
A medida, porém, proporciona um “espaço extra” de R$ 83,6 bilhões no Orçamento no qual daria para encaixar o novo Bolsa Família e as emendas de relator. Sobraria dinheiro, ainda, para um fundo eleitoral mais gordo no ano que vem.
Não bastasse o furo do teto e a irresponsabilidade fiscal perpetuada através da PEC dos Precatórios, agora articula-se utilizar a folga de orçamento para alimentar interesses de bases eleitorais de diversos parlamentares através das emendas de relator. Irresponsabilidade fiscal para fins eleitorais. Essa não é apenas a PEC do calote, mas também a PEC do escárnio. É inacreditável o descaso com o orçamento público”, afirmou a deputada Adriana Ventura (Novo-SP).
Para o deputado Danilo Forte (PSB-CE), aumentar os gastos no Orçamento para contemplar interesses eleitorais de parlamentares é uma “afronta” à situação do País. “É afrontoso fazer essas mudanças em um momento em que parte da população entrou em situação de miséria. Só no meu Estado (Ceará) há 4 milhões de pessoas em situação de pobreza. Tem gente correndo atrás de caminhão de lixo”, disse ele, que é coordenador do Comitê de Avaliação, Fiscalização e Controle de Execução Orçamentária (CFis) da Comissão Mista de Orçamento (CMO). “O perigoso é chegar a uma situação que nem 2013, quando a população se rebelou. O que está segurando o povo em casa é a pandemia, mas uma hora vai passar”, afirmou Forte. Procurado, Arthur Lira não se manifestou até a conclusão desta edição.
O procurador do Ministério Público junto ao TCU, Lucas Rocha Furtado, protocolou nesta quarta-feira, 27, uma representação em que pede apuração sobre a possibilidade de parlamentares usarem a ampliação do teto de gastos para destinar R$ 16 bilhões para emendas de relator-geral e R$ 5 bilhões para o fundo eleitoral. “A questão a ser dirimida seria averiguar se as mudanças legislativas possuem razões legítimas para existir atendendo ao interesse público ou se servem para atender – às escusas da lei – interesses personalíssimos e privados”, escreveu o procurador.
Parlamentares tentam ampliar fundo eleitoral para R$ 5 bilhões
O financiamento público de eleições no Brasil foi adotado em 2018, após o Supremo Tribunal Federal (STF) proibir doações de empresas para campanhas. Naquele ano, o montante foi de R$ 1,7 bilhão. Já para as eleições de 2022, os recursos podem chegar a R$ 5 bilhões.
O Congresso aprovou na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2022 um valor de R$ 5,7 bilhões para o fundo eleitoral. No entanto, a Presidência vetou. No Projeto da Lei Orçamentária Anual de 2022, que definirá a distribuição do Orçamento, o Palácio do Planalto previu R$ 2 bilhões para o fundo eleitoral. No entanto, a articulação no Congresso deve elevar o valor para entre R$ 4 bilhões e R$ 5 bilhões.
Eventual aprovação da PEC dos Precatórios facilitaria que se chegasse ao valor maior. Uma estimativa elaborada pela área orçamentária da Câmara avalia que, com ela, além dos R$ 5 bilhões do chamado “fundão”, pode-se obter R$ 16 bilhões para emendas de relator-geral, o mecanismo do orçamento secreto. /BRENO PIRES
Modalidades de repasses
Emenda individual
São indicações que cada deputado ou senador tem direito de fazer no Orçamento. Desde 2015, o governo federal é obrigado a executar tais despesas. Cada parlamentar pode indicar R$ 16 milhões.
Emenda de bancada
Parlamentares também têm direito de fazer indicações com a bancada de seus Estados. Cada uma das 27 bancadas pode definir como o governo deve gastar R$ 213 milhões em obras e serviços.
Emenda de relator
Permite ao relator-geral do Orçamento definir onde serão alocados recursos, além das emendas individuais e de bancada. É o mecanismo usado pelo governo no orçamento secreto, com a liberação de recursos sem transparência e critérios técnicos.
Transferência especial
Chamada de “emenda cheque em branco”, essa modalidade é um mecanismo de transferência de emendas individuais sem que o parlamentar tenha de definir projetos e detalhar como devem ser usados os recursos.