O ex-presidente do Banco Central (BC) e sócio da Tendências Consultoria Integrada, Gustavo Loyola, afirma que em condições patológicas, em que a política fiscal é muito ruim, o BC pode não conseguir mexer com as expectativas para a inflação. “Pode até afetar a demanda agregada de alguma maneira, mas, como no caso do Brasil hoje, não se consegue dar à política monetária aquela potência que poderia ter em outra circunstância. Assim, para atingir o mesmo objetivo, é preciso de muito mais juros”, afirma.
Ele avalia que, atualmente, o próprio Congresso está na trilha de irresponsabilidade fiscal em dobradinha com o Executivo. “A PEC dos Precatórios é uma pedalada mais ‘elegante'”, diz Loyola em entrevista ao Estadão/Broadcast.
E as perspectivas não são favoráveis, uma vez que, às portas de 2022, a questão eleitoral e eventuais ameaças institucionais e fiscais – em um ambiente de disputa polarizado – formam um contexto que pode ser bastante crítico do ponto de vista do câmbio. “Isso pode forçar o Banco Central a aumentar os juros além do que está sendo antecipado por analistas e agentes econômicos, o que estaria hoje entre 11,5% e 12% no final do ciclo”. Leia os principais trechos da entrevista.
Quanto da inflação internacional tem pesado internamente?
Existem, de fato, pressões inflacionárias que vêm do exterior. Em maior ou menor grau se tem hoje um aumento da inflação global em função, principalmente, das consequências da pandemia. Isso tem afetado os preços aqui no Brasil. No entanto, domesticamente, além das questões relativas à própria pandemia, existem outras que têm influenciado negativamente a inflação no Brasil. E esses efeitos negativos estão muito correlacionados com o comportamento da taxa cambial. Historicamente, os modelos mostram uma correlação entre preços de commodities e as moedas dos países produtores de commodities. Assim, a subida do preço em dólar é compensada pela queda do dólar. O ponto é que isso não aconteceu agora, pois os preços externos subiram e o real se desvalorizou. Esse movimento ocorreu notadamente pelo risco doméstico que vem, basicamente, de duas fontes de insegurança: o ambiente político e a questão fiscal. Há fatores externos que são magnificados pelo comportamento do prêmio de risco do país, pelo aumento da desconfiança, da incerteza.
O senhor pode especificá-los?
Pelo lado político, houve vários eventos, principalmente patrocinados pelo presidente da República, que colocaram em discussão a força das instituições democráticas no Brasil. Entre eles, o presidente disse que não respeitaria o resultado das eleições, disse que nosso sistema de votação é vulnerável a fraudes, houve todo um confronto com o Supremo Tribunal Federal, enfim, uma série de crises. E isso, evidentemente, é ruim, do ponto de vista da percepção dos investidores, dos participantes de mercado. Além disso, há a questão fiscal, mas não é porque o Brasil gastou recursos a mais e elevou o déficit público no ano passado para dar socorro durante a pandemia – isso ninguém questiona. Ocorre que essa situação seguiu em menor grau em 2021 e o governo começou a dar sinais de que estava abandonando a austeridade fiscal. Houve ainda sinais claros de enfraquecimento do ministro da Economia, Paulo Guedes, com a saída de uma parte importante de seu time. E, portanto, hoje há uma perspectiva de situação fiscal bastante negativa, com discussão sobre teto de gastos, calote de precatórios. Sem contar que as pesquisas eleitorais até agora indicam uma probabilidade maior de vitória do (ex-presidente) Lula, com o segundo lugar de (presidente Jair) Bolsonaro, ou seja, uma tendência de polarização. Os sinais que Lula dá e o desastre que foi a gestão petista do ponto de vista fiscal, principalmente na gestão da ex-presidente Dilma Rousseff, também levantam a questão do risco país.
Isso manteria esse prêmio elevado à frente?
Dependendo do andar da carruagem na questão eleitoral e das ameaças que por ventura venham pelo lado institucional e também da situação fiscal, é possível ter uma situação bastante mais crítica do ponto de vista do câmbio. Isso pode forçar o Banco Central a aumentar os juros além do que está antecipado por analistas e agentes econômicos, o que estaria hoje entre 11,5% e 12% no final do ciclo.
Como o senhor classificaria o atual contexto envolvendo a questão fiscal?
O governo segue cometendo erros bisonhos, crassos, na gestão fiscal. Raras vezes se viu o Executivo tão nas mãos do Congresso como agora. É irônico que o presidente (Bolsonaro) assumiu com uma promessa de nova política, mas está agora totalmente prisioneiro dos interesses paroquiais do Congresso. Houve a questão do Orçamento Secreto e a situação vem se deteriorando. Claro que existem algumas vozes sensatas no Congresso, mas a verdade é que o Legislativo também está nessa trilha de irresponsabilidade fiscal em dobradinha com o Executivo. Veja, pensando na ex-presidente Dilma, é claro que um impeachment é uma questão política, mas o fato que levou ao início do processo foram as pedaladas fiscais. É irônico ter hoje um governo que pedala também – e junto com o Congresso. A PEC dos Precatórios é uma pedalada mais “elegante”. Quando se joga para frente o pagamento de uma dívida líquida e certa para fazer gasto eleitoreiro, substancialmente, temos o mesmo fenômeno do passado acontecendo.
E, nesse cenário, como fica a política monetária do Banco Central?
O Banco Central fica correndo atrás. Em condições normais, não é raro acontecer no mundo situações em que uma política monetária mais restritiva compense uma política fiscal mais expansionista. Como as duas políticas agem sobre a demanda agregada, embora por canais e times diferentes, pode acontecer que o mix de política econômica seja este. Em condições patológicas, extremas, em que a política fiscal é muito ruim, o BC pode não conseguir, através da política monetária, mexer com as expectativas. Pode até afetar a demanda agregada de alguma maneira, mas, como no caso do Brasil hoje, não consegue dar à política monetária aquela potência que poderia ter em outra circunstância. Para atingir o mesmo objetivo, é preciso de muito mais juros. E aí que, se permanece nesse processo por muito tempo, tem o risco de cair na dominância fiscal, o pior dos mundos.
Que outro risco o senhor vê?
Outro risco que o Banco Central corre é ficar no papel de vilão. Politicamente, assumir esse papel durante algum tempo pode enfraquecer sua autonomia. E isso, em um caldeirão em que as instituições são ameaçadas, é muito arriscado. Gosto de citar o exemplo recente da Turquia onde o (presidente Recep) Erdogan foi acumulando poderes, mudando a fisionomia do Estado turco, menos democrático e mais autoritário, e em dado momento ele simplesmente passou por cima da autonomia do banco central. Aqui mesmo no Brasil, quando o BC foi criado, de 1964 para 1965, o presidente e os diretores tinham mandato. Mas, assim que eles contrariaram a orientação do ministro da Fazenda, essa autonomia do BC foi retirada pelo presidente Costa e Silva. Só para firmar que é preciso ter as instituições funcionando perfeitamente para que o Banco Central mantenha sua autonomia. O BC também precisa ter efetividade nos seus resultados. É a mesma coisa que um médico que fica dando remédio ao paciente, que sofre com isso, e a doença não vai embora. Provavelmente vai se procurar um outro médico e outro remédio.
Como fica a condução das expectativas dos agentes?
É importante falar nesta altura sobre as perspectivas para 2022. São ruins do ponto de vista de atividade econômica, que deve ficar praticamente estagnada. Na Tendências, estamos com expectativa de crescimento de 0,5% do PIB, mas com viés de baixa. Mas a inflação deve cair, ficando talvez acima do centro da meta (3,5%). Vai ter uma redução da pressão, principalmente porque, na economia internacional, espera-se certa acomodação da inflação, com a oferta se recuperando e alguma reação às mudanças das políticas monetárias. E aqui não está na previsão de ninguém uma alta da energia elétrica tão forte quanto foi este ano. Além disso, já haverá um efeito do aumento dos juros. Então, é provável que a inflação recue do que vem sendo antecipado. Porém, à custa de um freio muito forte na demanda.
O efeito da incerteza eleitoral no câmbio pode adiar o trabalho do BC de conduzir a inflação à meta?
O Banco Central tem alguma capacidade de intervir no câmbio, mas não consegue reverter uma tendência. Ele pode, momentaneamente, reduzir um pouco uma pressão vendendo dólar ou swaps (venda de dólares no mercado futuro), mas a capacidade de colocar uma barreira em uma tendência de depreciação é limitada. Se a situação de risco piora, será preciso manter os juros durante um período mais longo, afetando a atividade econômica também em 2023. É importante dizer que estamos com 13 milhões de desempregados e que, quando a pandemia veio, esse número estava em 11 milhões. Tivemos três anos, 2017, 2018 e 2019, em que o País cresceu 1% mais ou menos, e isso nem sequer foi suficiente para compensar os dois anos de queda na gestão de Dilma. Quando veio a pandemia, ano passado, o Brasil estava em uma situação tanto de emprego quanto de atividade econômica pior do que em 2014. Este ano, alguns setores até conseguiram se recuperar no nível do pré-pandemia, só que a perspectiva… No fundo, estamos parados em 2014.
O fato de o BC brasileiro ter iniciado o ciclo de aumento de juros antes pode amenizar em que medida os efeitos da elevação nos Estados Unidos?
Ameniza um pouco porque o diferencial de juros não reduz. Não obstante a isso, a questão fundamental é o prêmio de risco. Não adianta aumentar a remuneração que você paga ao investidor para ter exposição na moeda ou a ativos brasileiros e em real esse risco se eleva. Então, não faz nada mais, nada menos, do que compensar total ou parcialmente esse risco. Eu diria que o aumento de juros tende a evitar que o real se desvalorize mais, ou mesmo pode até levar a certa valorização da nossa moeda, porém, tudo isso pode ser anulado se o prêmio de risco continuar em elevação.