Sem nenhum critério técnico, cúpula do Congresso privilegia familiares e aliados políticos na distribuição de verbas das emendas de relator
Sempre que questionado sobre as chamadas RP9, Lira afirma que elas não devem ser demonizadas, pois permitem o envio de recursos para municípios menores e que nunca foram tratados com prioridade pela União. De fato, metade dessas transferências é destinada à saúde e pode contribuir para melhorar a vida da população. Lira não fala, no entanto, sobre como esse mecanismo tem sido usado para perpetuar distorções na divisão do Orçamento – desta vez, baseadas em relações pessoais.
Reportagem publicada pelo Estadão mostra um evidente privilégio para os municípios governados por aliados da cúpula do Legislativo. No sul de Minas, base de Pacheco, Pouso Alegre, do prefeito Rafael Simões (DEM), recebeu R$ 105.193.595,44 em emendas de relator nos anos de 2020 e 2021, ou R$ 681,77 por habitante. Na mesma região, Silvianópolis não ficou com dinheiro algum e Poços de Caldas, apenas R$ 1,5 milhão, ou R$ 9,05 per capita.
O cenário se repete no Ceará. Tauá foi alvo de transferências de R$ 151,4 milhões. Mombaça, a 79 quilômetros, recebeu apenas R$ 2,9 milhões. Os municípios têm tamanho, população e dificuldades semelhantes, mas Tauá é governada por Patricia Aguiar, mãe do deputado Domingos Neto, enquanto Mombaça está sob o comando de Orlando Filho, seu adversário político.
Petrolina (PE), gerida por Miguel Coelho, filho de Fernando Bezerra Coelho, recebeu R$ 195,7 milhões em RP9. Reduto político de Alcolumbre, Santana, no Amapá, ficou com R$ 146,6 milhões, o que o coloca no quarto lugar entre os municípios que mais tiveram acesso a essas verbas – com exceção das capitais de Estados.
É claro que Lira e sua turma não poderiam ficar de fora. Barra de São Miguel, administrada por Benedito de Lira, pai do prócer do Centrão, contou com R$ 4,7 milhões em emendas neste ano e R$ 5,8 milhões no ano passado. É o município que mais recebeu recursos em todo o Estado proporcionalmente à sua população, de 8,4 mil habitantes, segundo informou a Folha.
Mas, em vez de priorizar o saneamento básico, principal demanda de uma comunidade que vive do turismo e tira o sustento dos manguezais, Benedito de Lira optou por direcionar a verba para drenagem e pavimentação em convênios com a Codevasf, estatal cuja superintendência alagoana está nas mãos de Joãozinho Pereira, primo de Arthur Lira. Até agora, as obras seguem em ritmo lento e várias estão inacabadas.
Graças ao jornalismo, a necessidade de transparência das emendas de relator não está mais em discussão. O governo, que inicialmente negou a existência do artifício e ameaçou processar o Estadão, foi obrigado, por ordem do Supremo Tribunal Federal (STF), a editar um decreto com normas mínimas sobre esse tipo de transferência, usada como moeda de troca para votações no Congresso. Resta a batalha pelo resgate da moralidade, princípio, como muitos, solapado pelo governo Jair Bolsonaro e sua base de apoio no Congresso.
Em entrevista ao Valor, o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, disse que as emendas de relator são uma prerrogativa da maioria. “Quando se fala de equidade, é bom lembrar que a democracia estabelece que a maioria define a alocação dos recursos públicos”, afirmou.
Caberia perguntar ao ministro se o conceito de maioria, para ele, abarca o patrimonialismo com que recursos de toda a sociedade vêm sendo tratados pelo Executivo e o Legislativo. Também valeria questioná-lo sobre se a obsessão de políticos por asfalto é compartilhada por quem vive na miséria e deu o azar de não viver nas cidades dos compadres de quem manda de fato no Orçamento.