O Orçamento privatizado
Com partilhas secretas e outros arranjos, a lei orçamentária serve muito mais a interesses privados do que a fins públicos
A maior e mais bem-sucedida privatização dos últimos três anos foi a do Orçamento Geral da União, apropriado pelo presidente Jair Bolsonaro e por seus associados no Congresso Nacional. O sucesso é medido, nesse caso, pelas vantagens, principalmente político-eleitorais, obtidas pelas autoridades envolvidas no empreendimento. Bolsonaro e sua equipe chegaram ao governo prometendo privatizar um grande número de bens controlados pela União. Já no primeiro ano essas vendas poderiam render R$ 1 trilhão, segundo o futuro ministro da Economia, Paulo Guedes. Nada parecido com isso foi realizado até agora, quando se completam três anos de mandato. Mas o balanço é muito diferente quando se usa um critério menos convencional. Basta verificar, por exemplo, o avanço dos interesses privados com a consagração do orçamento secreto, uma grande vitória antirrepublicana.
O chamado cidadão comum, empenhado em ganhar a vida com o trabalho do dia a dia, continua fornecendo o dinheiro para as despesas da União. Esse dinheiro é público, portanto, mas seu uso tem sido cada vez menos associado a programas de amplo interesse, ligados a planos de governo e a programas com valor estratégico. Mesmo a noção de governo é dificilmente associável ao grupo instalado no Palácio do Planalto e em sua vizinhança. Tendo assumido o governo em janeiro de 2019, o presidente Jair Bolsonaro jamais se dedicou de fato a governar o País nem demonstrou, até hoje, entender essa atividade – diferente de apenas mandar – como sua obrigação.
Transparência e constante prestação de contas deveriam ser obrigações normais quando se mexe com dinheiro público. Não há transparência, no entanto, quando se trata, por exemplo, das emendas de relator. Essas emendas, denunciadas como orçamento secreto pelo Estado, deverão consumir R$ 16,5 bilhões no próximo ano. Essas verbas deverão destinar-se, como geralmente ocorre no caso de emendas, a obras quase sempre paroquiais, ligadas ao interesse eleitoral de parlamentares. A novidade tem sido, nesse caso, a ocultação dos nomes envolvidos na partilha e na destinação do dinheiro.
Parlamentares ligados à área da Saúde haviam pedido R$ 5 bilhões, menos que um terço das verbas do orçamento secreto, para compra de vacinas. Não se incluiu esse item no relatório final da proposta orçamentária. Mas foram incluídos R$ 4,9 bilhões para o fundo eleitoral, muito mais que o dobro da verba de 2018, R$ 2 bilhões. Não entraram os R$ 5,7 bilhões inicialmente pretendidos pelos parlamentares, mas nenhum critério razoável justifica o valor afinal aprovado.
O presidente Bolsonaro conseguiu R$ 1,7 bilhão para o reajuste salarial de policiais federais, um evidente esforço para agradar a uma corporação considerada importante para seus planos pessoais. Essa iniciativa facilita a reivindicação de benefício semelhante por outros servidores.
Se as corporações tiverem sucesso, a gestão das finanças públicas ficará bem mais difícil, num cenário de fortes tensões políticas, inflação alta e baixas expectativas de crescimento. Também o aumento de gastos com a versão bolsonariana do Bolsa Família, o Auxílio Brasil, tem evidente motivação eleitoral, pois a mudança foi concebida para produzir efeitos em 2022.
Apenas R$ 44 bilhões, o menor valor desde 2010, descontada a inflação, e um dos menores já contabilizados, estão previstos para investimentos em transportes, energia, saneamento, serviços de saúde, educação, ciência e tecnologia. Baixos investimentos limitam a atividade no curto prazo e ameaçam o potencial de crescimento em prazos mais longos.
Com pouco investimento próprio, o setor público torna-se mais dependente do capital privado para a construção e a manutenção da infraestrutura. É desejável a participação privada nessa área, mas a atração desse capital depende das perspectivas do País. Essas perspectivas são hoje em grande parte determinadas pela apropriação do Orçamento – dinheiro público posto a serviço de interesses privados em vez de dinheiro privado a serviço de objetivos públicos.