Desde o início de 2021, nota-se a deterioração do processo legislativo, com situações inusitadas que desrespeitam os mais básicos princípios democráticos
No mundo inteiro, notam-se casos de deterioração democrática. São governos que, sem romper formalmente os limites constitucionais, se rebelam contra os controles institucionais para impor suas pretensões autoritárias. Valem-se, entre outros meios, do ressentimento e da desinformação. Infelizmente, o Brasil não é exceção. Por exemplo, em descarada imitação do que Donald Trump fez nos Estados Unidos, o governo Bolsonaro promoveu em 2021 forte campanha de desmoralização do sistema eleitoral, com a acusação, sem provas, de supostas fraudes nas urnas eletrônicas.
Deve-se advertir, no entanto, que o regime democrático brasileiro tem sofrido também um outro tipo de ataque. Trata-se da deterioração do processo legislativo observada ao longo de 2021, com situações absolutamente inusitadas, que desrespeitam os mais básicos princípios democráticos. Gravíssimo, o tema exige especial cuidado do Judiciário para defender a Constituição e assegurar o funcionamento do Legislativo.
Essa deterioração vai além do atropelo na tramitação dos projetos, excluindo o debate, o que, por si só, é muito preocupante. Constata-se o descumprimento do processo legislativo, como ocorreu no fatiamento da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) dos Precatórios. Diante da resistência de vários senadores a respeito das alterações constitucionais aprovadas na Câmara, inventou-se uma manobra: tratar cada dispositivo da PEC como se fosse independente, e não parte de um todo.
Com isso, a PEC dos Precatórios, que não tinha votos suficientes para ser aprovada – ou seja, que não contava com o apoio parlamentar mínimo exigido pela Constituição –, teve alguns trechos promulgados. Num passe de mágica, criou-se uma nova modalidade de processo legislativo. É no mínimo estranho que a Constituição (que traz requisitos rigorosos para as alterações em seu texto) possa ser modificada dessa forma.
Outro episódio esdrúxulo de 2021 foi a votação na Câmara do projeto que altera o Imposto de Renda (IR). No momento em que foi votado, o texto final da reforma do IR era desconhecido pelos parlamentares. Não havia sido divulgado. Só depois da votação, os deputados souberam os efeitos de seus votos sobre as contas públicas. Para surpresa de muitos, descobriu-se que a reforma do IR aprovada na Câmara resultava em perda de receita de R$ 21,8 bilhões para a União e de R$ 19,3 bilhões para Estados e municípios. Não há democracia se a votação é feita sobre um texto desconhecido. A rigor, não houve sequer votação, uma vez que não se sabia o conteúdo do que estava em discussão.
Num Estado Democrático de Direito, cada Poder é livre e autônomo. Isso não significa, no entanto, que a presidência da Câmara, ou quem quer que seja, possa ignorar o processo legislativo, que é o caminho pelo qual se expressa a vontade da população, por meio de seus representantes. Não se pode infringir esse processo impunemente. Afinal, leis que não foram votadas simplesmente não são leis.
É também inteiramente inusitada a situação revelada pelo Estado a respeito das emendas de relator, com repasse de dinheiro público por vias não transparentes. Essa manobra com o Orçamento agride uma das principais funções do Poder Legislativo, que é permitir que a sociedade defina e controle o uso dos recursos públicos. Não há controle sem transparência.
Não são episódios isolados. Observa-se uma nítida deterioração do processo legislativo, relacionada com Arthur Lira na presidência da Câmara dos Deputados, o que foi, por sua vez, fortemente patrocinado pelo Palácio do Planalto. Além disso, as confusões e as incompetências de Jair Bolsonaro deixaram o Executivo federal especialmente refém das pressões do Centrão, o que intensifica a disfuncionalidade do Congresso e favorece a opacidade de suas práticas.
É mais um ataque, portanto, com a participação estratégica do bolsonarismo, contra o funcionamento do Poder Legislativo. Cabe ao Supremo defender a Constituição. Cabe ao eleitor não votar em quem faz tanto mal ao regime democrático.