A liberdade ameaçada pela desinformação
Valendo-se da profunda aspiração humana por ser livre, campanhas contra o passaporte da vacina pregam a morte. O cuidado com o outro não agride o regime de liberdade
Entre os maiores desafios do mundo atual, encontra-se o fenômeno da desinformação. Não é apenas que a realidade seja complexa e sujeita a várias interpretações, além de suscitar diferenças de percepção e opinião. A desinformação é a manipulação de fatos e conceitos para sujeitar uma parcela da população a determinados interesses. Essa tática, que sempre existiu, ganhou especial poder corrosivo por meio das redes sociais, com efeitos sobre todo o tecido social.
Um dos conceitos mais atacados pelas campanhas de desinformação é a liberdade. Os manipuladores utilizam a profunda aspiração humana por ser livre para impor suas concepções, em uma perversa inversão de valores. Caso recente ocorreu com a exigência do chamado passaporte da vacina, que é uma medida de elementar prudência, adotada pacificamente ao longo da história para proteção da saúde da população. Havendo um perigo sanitário e existindo meios para reduzir esse perigo, exige-se, pelo bem da coletividade, a adoção desses meios.
No entanto, no mundo inteiro – especialmente, nos Estados Unidos e na Europa, mas também aqui – começou a haver resistência ao passaporte da vacina, cuja exigência para determinadas atividades passou a ser apresentada como violação da liberdade individual. O presidente Jair Bolsonaro disse sobre o assunto: “Eu prefiro morrer do que perder a minha liberdade”. O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, fez-lhe coro: “É melhor perder a vida do que perder a liberdade”.
É triste ver autoridades, que foram investidas de poder para cuidar do interesse público, disseminarem esse tipo de falso problema. É evidente que toda exigência do poder público – por exemplo, o passaporte da vacina em meio a uma pandemia ou a proibição de fumar em lugares fechados – envolve alguma limitação à liberdade individual. Este é justamente o papel da autoridade pública: dentro de sua esfera de competência e em conformidade com a lei, deve zelar pelo interesse público.
No entanto, e aqui está a falácia da frase de Bolsonaro, a limitação trazida pela exigência de passaporte da vacina é perfeitamente justificada pelo bem protegido, a saúde de todos. Não há nenhuma proporcionalidade – escapa de qualquer racionalidade – preferir a morte à vacina anticovid.
Há muitas situações em que a defesa da liberdade pode levar ao sacrifício da própria vida. Trata-se de atitude nobre, verdadeiramente heroica. A campanha contra a vacinação, em nome de uma suposta liberdade, é de outra natureza, inteiramente diferente. Em vez de defender a vida e a liberdade, essas pessoas estão pregando a morte; e pior, a morte dos outros.
Há outro aspecto que desvela a falácia dessa suposta defesa da liberdade. Jair Bolsonaro e seus seguidores nunca defenderam a liberdade dos cidadãos em face do Estado. Por exemplo, elogiam a ditadura militar, invocam o AI-5 e defendem a tortura. Ou seja, quando o aparato estatal viola escancaradamente a liberdade dos cidadãos, ficam do lado do Estado. Mas é só mencionar o passaporte da vacina, que não prende ou tortura ninguém, que passam a clamar pela liberdade e o direito de ir e vir.
Como se vê, não há coerência, tampouco consistência teórica. Mesmo a concepção mais liberal de Estado entende que o poder público tem o dever de restringir a liberdade para defender a vida e a liberdade dos cidadãos. No entanto, a desinformação sobre a liberdade, por mais esdrúxula que seja, confunde pessoas, produz desconfiança e gera danos sociais. E não é só com as vacinas.
Outro caso escandaloso de manipulação é a defesa da liberdade de expressão para a prática de crimes. “Mas ele apenas fez um vídeo”, dizem alguns liberticidas, contestando determinadas medidas judiciais do Supremo. Diante de tal confusão, é preciso lembrar o óbvio: há liberdade de expressão, mas não há autorização para agredir, ameaçar ou ofender.
A desinformação ataca princípios óbvios, que sempre fundamentaram o tecido social. Que fique claro: a lei não se opõe à liberdade, e o cuidado com o outro não agride o regime de liberdade.