O círculo vicioso da constitucionalização

By | 03/01/2022 6:54 am

A Constituição de 1988, que já nasceu extensa, tornou-se com o tempo ainda mais ampla e detalhista, o que acarreta novas demandas de alteração, fragilizando-a ainda mais

(Editorial dO Estadâo, 03 de janeiro de 2022)

Mesmo os mais ardentes defensores da Constituição admitem: o texto produzido pela Assembleia Constituinte é muito extenso. No momento da promulgação, a Carta de 1988 tinha 245 artigos, além dos 70 artigos do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Houve o chamado fenômeno da ampla constitucionalização. Muitos assuntos, que poderiam ser regulados pela legislação ordinária – ou mesmo serem deixados à livre disposição da sociedade –, ganharam assento constitucional.

Pode-se dizer que o tamanho da Constituição de 1988 foi uma escolha da sociedade. Para garantir a ampla proteção do indivíduo e uma determinada configuração do Estado, retirou-se da esfera legislativa ordinária uma série de temas, dando-lhes status constitucional. O art. 5.º, sobre direitos e garantias fundamentais, tem 78 incisos.

Em tese, a ampla constitucionalização deveria significar uma maior estabilidade do ordenamento jurídico, uma vez que mudanças constitucionais são mais difíceis de serem realizadas. Há rito próprio, com requisitos mais exigentes: aprovação em dois turnos por cada Casa Legislativa com quórum de três quintos.

No entanto, mais do que preservar a estabilidade da ordem jurídica ao longo do tempo, essa ampla constitucionalização produziu um efeito inverso: o enfraquecimento da Carta de 1988. Por tratar de muitos assuntos, muitas vezes num detalhamento excessivo, a Constituição tornou-se, desde a promulgação, objeto de muitas pressões para sua alteração. Com isso, ainda que existam condições específicas para alterar o texto, o Congresso aprovou muitas Emendas Constitucionais (ECs). A EC relativa ao não pagamento dos precatórios foi a 113.ª emenda promulgada!

É muita alteração sobre um texto cuja função é precisamente prover estabilidade. Por exemplo, o art. 37, XI, que dispõe sobre o teto da remuneração do funcionalismo público, teve quatro versões ao longo desses anos.

Vale lembrar também que o grande número de emendas intensifica ainda mais o fenômeno da ampla constitucionalização. Quase sempre, as alterações levam a um aumento de assuntos e de detalhamento sobre o texto. Assim, a Constituição de 1988, que já nasceu extensa, tornou-se ao longo de tempo ainda mais ampla e detalhista, o que por sua vez acarreta novas demandas de alteração.

Recente levantamento do Estado mostrou que o número de Propostas de Emendas à Constituição (PECs) cresceu 190% na última década, considerando-se as iniciativas em tramitação na Câmara dos Deputados e no Senado. Ao todo, o Congresso tem hoje mais de 1.300 emendas passíveis de aprovação. Tem-se, assim, o círculo vicioso, prejudicial à força e estabilidade da Constituição: ao ampliar o texto, as emendas o fragilizam, o que demanda novas emendas, e assim vai.

A Constituição, que deveria ser causa de estabilidade e segurança jurídica, torna-se ela mesma fonte de instabilidade. Em vez de ser referência perene para a sociedade e o Judiciário, torna-se ela mesma o grande objeto de mudança. A centena de emendas promulgadas fala por si.

O fenômeno da crescente constitucionalização produz ainda outro efeito, especialmente sentido nos dias de hoje e que tende a crescer. Uma vez que a função do Supremo Tribunal Federal (STF) é defender a Constituição, a ampliação do texto constitucional conduz necessariamente a um aumento dos temas de competência da Corte.

Dar status constitucional a um tema significa colocá-lo sob a alçada do Supremo. Assim, mais do que uma usurpação de poder, a crescente interferência do STF nos mais variados temas e questões da sociedade é também resultado da atividade do próprio Legislativo, que continuamente insere na Constituição novos temas, e do Executivo, autor de muitas PECs.

Esse cenário revela que não basta “fazer reformas”. É preciso pensá-las bem, de forma orgânica, tendo em conta também seus efeitos sistêmicos. A atividade legislativa não pode se converter num mero fazer, como se viu em 2021. É preciso estudo, planejamento, ponderação – ou seja, competência e responsabilidade.

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About Luiz Gonzaga Lima de Morais

Formado em Jornalismo pelo Universidade Católica de Pernambuco, em 1978, e em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, em 1989. Faz radiojornalismo desde março de 1980, com um programa semanal na Rádio Espinharas FM 97.9 MHz (antiga AM 1400 KHz), na cidade de Patos (PB), a REVISTA DA SEMANA. Manteve, de 2015 a 2017, na TV Sol, canal fechado de televisão na cidade de Patos, que faz parte do conteúdo da televisão por assinatura da Sol TV, o SALA DE CONVERSA, um programa de entrevistas e debates. As entrevistas podem ser vistas no site www.revistadasemana.com, menu SALA DE CONVERSA. Bancário aposentado do Banco do Brasil e Auditor Fiscal do Trabalho aposentado.

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