O crescimento de desabrigados impõe um duplo desafio à sociedade: fomentar a cultura da solidariedade e cobrar de seus representantes eleitos políticas sociais robustas
As causas são multidimensionais. Há o drama de fundo civilizacional, não só no Brasil, de uma cultura individualista que degrada as relações familiares. Há a desigualdade histórica radicada nas estruturas socioeconômicas nacionais. Há a crise econômica precipitada pelo governo Dilma Rousseff e agravada pelo governo Jair Bolsonaro. E há, claro, o impacto da pandemia – também agravado por Bolsonaro.
A insensibilidade do governo ante a tragédia, acompanhada em tempo real, de centenas de milhares de brasileiros vitimados pelo vírus despertou reações contundentes na mídia e na arena política, por exemplo, com a CPI da Covid.
Mas, enquanto a epidemiologia estima que em 2022 a pandemia tende a ser dissipada, seus impactos socioeconômicos, muito mais difusos, devem perdurar por anos. Hoje, mais de 20 milhões de brasileiros se alimentam dia sim, dia não; 5 milhões de crianças vão dormir com fome. Com muito menos representatividade, as vítimas da miséria tendem a ser absorvidas nas estatísticas e amortizadas como um fato “natural” do “novo normal”.
Tal como a causa da catástrofe é multidimensional, assim deve ser a sua solução. Há o desafio cultural do resgate da família como alicerce da sociedade. Há também o apelo à solidariedade. Sob o impacto da primeira onda da pandemia, as ações humanitárias cresceram espetacularmente. Segundo o Grupo de Instituições e Fundações de Empresas, os investimentos sociais das empresas sofreram mesmo uma mudança de perfil e o combate à fome e à pobreza entrou com mais força no rol de prioridades. Ainda assim, em comparação com outros países, os indicadores de filantropia no Brasil permanecem medíocres e, desde 2020, a curva de doações se achatou.
Mas, acima de tudo, há responsabilidade do Poder Público. A amplificação e a intensificação dessa tragédia anônima, silenciosa e difusa têm relação direta com uma mentalidade anticidadã cujo epicentro é o Palácio do Planalto. Na virada de 2020 para 2021, no pico da crise sanitária e econômica, o auxílio emergencial sofreu um apagão, enquanto o presidente passeava pelo litoral e os congressistas, em recesso, negociavam a troca da liderança do Senado e da Câmara.
Hoje, enquanto toda uma nova população de famélicos e desabrigados circula de mãos abanando pelas ruas do País, nos corredores do Congresso os representantes do povo consomem seu tempo discutindo o rateio do butim orçamentário. As disputas por pedaços dos recursos da República para satisfazer interesses corporativistas, clientelistas e patrimonialistas expõem imensas parcelas da classe política incapazes de estabelecer verdadeiras prioridades, de deliberar políticas públicas para garantir condições mínimas de moradia e alimentação e de preservar recursos para gastos e investimentos sociais.
Assim como em outras áreas da administração pública, na questão social não há nada a esperar do governo Bolsonaro. O melhor que as forças cívicas podem fazer é uma política de redução de danos. A responsabilidade dos governos regionais aumenta exponencialmente. Mas é preciso que o drama dos vulneráveis entre com força nos debates eleitorais. O eleitorado precisa se imunizar contra a demagogia de candidatos que estão entre os grandes responsáveis por essa tragédia humanitária, sobretudo os próceres do lulopetismo e do bolsonarismo, e promover uma cobrança sem trégua por políticas sociais sustentáveis àqueles que se postulam como candidatos da renovação.