A defasagem da imunização infantil em um país mundialmente reputado por sua cobertura vacinal é uma anomalia que tem nome e sobrenome
A defasagem, que coincide com o retorno às aulas e o aumento das mortes e da pressão hospitalar pela variante Ômicron, é tanto mais chocante quando se considera que o Brasil tem uma infraestrutura e uma cultura vacinal, sobretudo infantil, mundialmente reputadas. Esse sistema prevaleceu na imunização dos adultos, que aderiram massivamente à vacinação, mas, justamente na hora de vacinar as crianças, sua resistência imunológica começa a dar mostras de comprometimento ante a virulência do presidente e suas hostes negacionistas.
Há meses a imunização infantil está em curso nos países desenvolvidos. Entre os vizinhos, o Chile já vacinou 77% de suas crianças e a Argentina, 72%. Não fosse o descaso do governo, boa parte das crianças teria começado o ano letivo já imunizada com duas doses. Mas as primeiras doses só chegaram à maioria das cidades no dia 17, um mês após a aprovação da Anvisa. Somadas as vacinas em estoque e contratadas, 5,5 milhões de crianças ainda não têm vacina garantida. O Instituto Butantan afirma ter 10 milhões de doses para pronta entrega. Mas, no caso da Coronavac, a desídia de Jair Bolsonaro pela vacinação se soma ao seu temor de associá-la ao governador de São Paulo, João Doria, seu concorrente na eleição.
Em ano eleitoral, a politicagem combinada à incompetência cria uma tempestade perfeita que ameaça as crianças e dá sobrevida ao vírus. A sabotagem bolsonarista à vacinação adulta está se repetindo na infantil, mas, qual uma nova variante, com mais eficiência e virulência.
A quantidade e a sofisticação das informações falsas estão muito maiores do que no ano passado. As investidas contra a imunização infantil são tanto mais graves na medida em que hoje se tem mais informação sobre a segurança e eficácia das vacinas, e são especialmente cruéis, por manipularem os instintos de proteção dos pais, produzindo o efeito inverso de expor seus filhos a riscos evitáveis.
Jair Bolsonaro e seu sabujo no Ministério da Saúde têm feito – quase que literalmente – o diabo para incentivar a hesitação vacinal. Bolsonaro já disse que nenhuma criança brasileira morreu de covid, mas, após os acidentes de trânsito, a doença foi a principal causa de morte de crianças, cerca de 600, e as taxas de mortalidade são de 5 a 10 vezes maiores do que na Europa ou EUA. Além disso, o presidente questionou a honestidade dos técnicos da Anvisa e faz terrorismo sobre os efeitos adversos da vacina em aberrante contraposição aos consensos pediátricos sobre riscos e benefícios. Ainda hoje o Ministério da Saúde dá sinais trocados sobre a eficácia e a segurança das vacinas e faz campanha para condicionar a vacinação infantil a um atestado médico inédito na cobertura vacinal brasileira.
Bolsonaro – que, em vez de esboçar um gesto de compaixão aos aflitos pelo vírus, lhes reservou apenas escárnio – foi às redes sociais se solidarizar com um podcaster americano notório por disseminar teses negacionistas e que hoje é pivô de um debate sobre responsabilidade editorial e liberdade de expressão. Tivesse o presidente um currículo liberal, vá lá, mas quando esse “paladino da liberdade” é o mesmo que prestigia torturadores e instrumentaliza o Ministério da Justiça para perseguir críticos, a manobra para excitar suas bases eleitorais se mostra indisfarçável. “Prefiro morrer a perder minha liberdade”, bravateou recentemente. Esse risco inexiste. Mas a sua defesa insana de uma suposta “liberdade individual” de se infectar e infectar os outros, que já condenou inúmeros brasileiros à morte, agora está ameaçando aqueles que nem sequer têm a liberdade de escolher entre se imunizar ou se expor ao vírus mortal: as crianças.