PEC promulgada nesta quinta-feira pelo Congresso libera R$ 41,25 bilhões para o governo gastar e turbina benefícios sociais às vésperas da eleição
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) “Kamikaze” cria um estado de emergência desproporcional e excessivo no final do mandato do presidente Jair Bolsonaro (PL), aumentando o risco fiscal, conforme nota da consultoria de orçamento da Câmara.
A PEC foi promulgada nesta quinta-feira, 14, pelo Congresso Nacional para turbinar benefícios sociais na véspera da eleição e liberar R$ 41,25 bilhões em gastos fora das principais regras fiscais e eleitorais do País.
Conforme os técnicos da Câmara, o estado de emergência decretado pela proposta é desproporcional e os gastos invertem o princípio democrático de isonomia entre os candidatos no período eleitoral. As críticas da consultoria se somam à opinião de outros especialistas, que alertaram nos últimos dias para os riscos fiscais da PEC patrocinada pelo governo e aprovada no Congresso, inclusive com o voto de integrantes da oposição.
O aumento do preço dos combustíveis não é motivo para uma medida tão drástica nas regras, na avaliação dos consultores, e o efeito prático pode ser aumento nos juros e no câmbio (desvalorizando ainda mais o real), ou seja, o inverso do pretendido. Nos bastidores, especialistas apontam que a PEC libera o caixa do governo para uma série de “pedaladas orçamentárias”, em referência às práticas do governo Dilma Rousseff (PT), com a diferença de que o governo Bolsonaro altera a lei para escapar das regras. Essas manobras podem vir por meio do pacote de projetos aprovado pelo Congresso na terça-feira, 12, e relevado pelo Estadão.
Com o estado de emergência decretado pela PEC, o governo ficará livre para aumentar o Auxílio Brasil de R$ 400 a R$ 600 até o final do ano e conceder outros benefícios driblando o teto de gastos, que limita o crescimento das despesas da União, a meta de resultado primário, que fixa a conta do governo entre despesas e receitas, e a regra de ouro, que proíbe o governo de se endividar para pagar despesas correntes. O estado de emergência é comparado ao estado de calamidade decretado em 2020, que permitiu o orçamento de guerra adotado em plena pandemia de covid-19.
“Ainda que a situação de ‘emergência’ seja menos grave, adota-se na PEC praticamente as mesmas dispensas e privilégios concedidos para situações mais críticas que caracterizam o estado de calamidade pública, o que não parece razoável. Abre-se mão de praticamente todo mecanismo de defesa fiscal de forma desproporcional à situação que se vislumbra”, diz a nota, elaborada a pedido da deputada Adriana Ventura (Novo-SP).
O Novo, único partido que orientou a rejeição da PEC “Kamikaze”, prepara uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) para derrubar a proposta. A análise técnica deve servir de base para esse questionamento. “Nosso jurídico já está trabalhando na tese, mas é impressionante a velocidade com que o Congresso faz remendos casuísticos, e ao mesmo tempo é de uma letargia também impressionante quando se trata das reformas estruturais”, criticou o presidente do Novo, Eduardo Ribeiro.
Um dos principais problemas da PEC “Kamikaze”, na avaliação dos técnicos, é a falta de uma fonte de recursos para bancar os gastos, necessidade básica de qualquer aumento de despesa no governo federal. No fim das contas, o governo vai acabar se endividando para cobrir as despesas. “Considerada a atual situação de déficit fiscal, a PEC, da forma como se encontra, em especial quanto ao fato de não prever compensação de despesas com caráter nitidamente continuado (Auxílio Brasil), atinge princípios basilares de equilíbrio das contas públicas e aumenta o risco fiscal, precedente que aparenta ser excessivo.”
A PEC foi uma saída do governo para autorizar os gastos e driblar a lei eleitoral, que proíbe a concessão de novos benefícios na véspera da disputa, o que na prática pode favorecer o presidente na tentativa de reeleição ao Planalto. “As regras que limitam despesas de final de mandato, ainda que constem apenas da legislação infraconstitucional (LRF e lei eleitoral), representam, em seu conjunto, princípio consolidado que garante uma disciplina fiscal ainda mais rigorosa nos períodos de transição. A PEC, ao criar o estado de emergência no final do mandato, com novas despesas, parece inverter o sentido democrático da legislação protetora da isonomia eleitoral”, diz a nota.
Além do risco fiscal, a PEC “Kamikaze” levanta questionamentos sobre a transparência dos gastos. A proposta limita os gastos aos benefícios elencados no texto. Diferente das despesas da covid-19, a medida não cria nenhum marcador específico no Orçamento para acompanhar a destinação final dos gastos. “Sem uma marcação, vai ser impossível acompanhar onde esses recursos estão sendo efetivamente gastos e se estão sendo gastos para as finalidades da PEC”, disse o economista Gil Castello Branco, secretário-geral da Associação Contas Abertas.