Para ministro, alternativa à PEC era ‘deixar a pessoa morrer de fome’; como liberal, ele deveria saber: não é preciso abrir mão da responsabilidade fiscal para ajudar os pobres
Trata-se de um falso trade-off. Seria perfeitamente possível aprovar um robusto pacote de ajuda aos mais necessitados sem atropelar a Constituição e sem ignorar os limites fiscais e eleitorais. É claro que, para isso, seria preciso um governo capaz de se antecipar aos problemas reais do País, de fazer um bom planejamento dentro dos parâmetros orçamentários e de liderar os esforços nacionais para impedir que a catástrofe da fome se consumasse. E o governo que o sr. Guedes integra mostrou-se miseravelmente incapaz disso.
Começando pelo óbvio, não foi exatamente nesta semana ou desde a eclosão da guerra entre Rússia e Ucrânia que o Brasil voltou a marcar presença no vergonhoso mapa da fome. Como mostrou o relatório O Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo 2022, divulgado por cinco agências da ONU, 15,4 milhões de brasileiros viviam sob insegurança alimentar grave no período de 2019 a 2021.
Ainda que esse fracasso seja uma construção que não pode ser atribuída unicamente ao governo Jair Bolsonaro, era obrigação da administração federal, se pelos pobres realmente tivesse alguma consideração, ter feito algo para resolver a situação, levando em conta a dimensão imediata – afinal, quem tem fome tem pressa – e uma perspectiva de solução de médio e longo prazos. Bastava seguir as etapas de elaboração de uma política pública, desde a identificação do problema e de suas causas até a formulação, implementação e avaliação de seus resultados, em articulação com Estados, municípios e organizações da sociedade civil.
É basicamente tudo que não foi feito na criação do Auxílio Brasil, que em seis meses de vigência conseguiu gerar uma fila de quase 3 milhões de famílias e demandar um reajuste de 50% em seu piso. Até aí, não há surpresa nenhuma: é natural, ainda que ilegal, que políticos em campanha queiram usar a máquina pública e criar uma marca própria às vésperas de uma disputa eleitoral. É, no entanto, função da equipe econômica alertar para os efeitos da gastança desenfreada, defender o respeito das leis e da Constituição e, sobretudo, convencer o governo a abandonar iniciativas que custarão muito e entregarão pouco, propondo em seu lugar a adoção de programas que efetivamente funcionam. Mesmo que o presidente de plantão faça ouvidos moucos a esse chamado, esse é o papel que se espera de um ministro da Economia.
É por isso que chega a ser irônico, para não dizer trágico, que o maior ataque aos fundamentos fiscais das últimas décadas tenha vindo de um governo pretensamente liberal. É consenso, ao menos entre economistas ortodoxos, que o desprezo às questões fiscais – praxe no governo Bolsonaro – pode até impulsionar o crescimento, mas se esse aumento de despesas não vier acompanhado pelo corte de outras despesas ou pelo aumento de impostos, a bondade de hoje se materializa na maldade de amanhã. Os resultados são conhecidos: aumento no déficit das contas públicas, aceleração da inflação, juros mais altos para financiar a dívida, desvalorização do câmbio, queda dos investimentos, avanço do desemprego, redução do PIB e, consequentemente, aumento da pobreza e da fome.
Responsabilidade fiscal e responsabilidade social não são conceitos incompatíveis ou excludentes, mas complementares. Ajudar os mais necessitados é um dever do governo, assim como manter um equilíbrio macroeconômico sólido o suficiente para garantir o financiamento de políticas sociais sem gerar descrédito entre os investidores. Devastar o arcabouço fiscal não era um caminho inevitável. Foi uma escolha consciente deste governo, com respaldo vergonhoso de uma oposição pusilânime. Usar as famílias vulneráveis como pretexto para justificar essa decisão revela, mais que incompetência, a falta de escrúpulos de seus representantes.