A última frase do discurso de Lula da Silva na posse de domingo fala em democracia sempre. Expressa um alívio, porque escapamos de destinos indesejáveis como o da Hungria ou mesmo, na outra ponta do espectro, o da Nicarágua.
A “democracia sempre” revela que a sociedade resistiu às ameaças de Jair Bolsonaro, mas implica também um trabalho permanente de vigilância e diálogo para que realmente não haja retrocessos.
Uma das variáveis interessantes no futuro próximo é desenhar o destino desse movimento que apoiou Bolsonaro e, parcialmente, resistiu na porta dos quartéis até o dia da posse de Lula.
Há quem pense que esses eleitores voltam ao leito original da direita clássica. Discordo. Eles são produto de uma nova época e se organizam de outra maneira, através de instrumentos que não existiam no passado.
O gênio não volta mais à lâmpada. No entanto, alguma coisa pode acontecer nesse movimento de extrema direita que sacudiu o País a partir de 2018.
Seu líder foi derrotado e escolheu o péssimo caminho da fuga para a Disneylândia. Ele poderia ter trilhado a senda democrática: reconhecer a derrota, empossar o eleito e se dedicar à oposição. Ou mesmo poderia ter tentado um golpe com uma chance bem reduzida de vitória, risco de prisão ou mesmo de sua integridade física.
Bolsonaro não fez nada disso. Apenas se refugiou na amargura e esperou que movimentos de massa, isolados, resolvessem o problema que ele não conseguia equacionar.
Certamente isso vai pesar o seu futuro. Assim como pesará em termos históricos o fato de ser um presidente que não conseguiu se reeleger. É um destino que partilha com Marcelo Crivella, prefeito do Rio também derrotado. Ambos atuaram tão mal que dão aos seus sucessores uma grande chance de acertar, no princípio, apenas fazendo o trivial numa administração.
A experiência internacional, sobretudo a francesa, mostra que os partidos de extrema direita se renovam quando percebem que suas chances eleitorais se reduziram. É o caso de Marine Le Pen na França. Ela percebeu que seguiriam marginalizados e empreendeu um programa de “desdemonizacão” de seu partido. Expulsou radicais, condenou a violência e o racismo explícito, além de ter se aproximado da visão da Europa. Ainda expulsou o próprio pai, Jean-Marie Le Pen.
Também na Itália, Giorgia Meloni suavizou seu discurso sobre a Europa e pretende articular alguns países dirigidos pela direita.
Mas as semelhanças entre Europa e Brasil não podem ser levadas muito adiante. Duas mulheres, mesmo que distantes do feminismo, são mais hábeis que Bolsonaro.
A extrema direita brasileira, inspirada na norte-americana, tem características peculiares. Uma delas é a paixão pelas armas, com o projeto de armar a população. No caso brasileiro, essa bandeira é rejeitada, segundo as pesquisas, por 70% da população.
Outra característica é a negação das mudanças climáticas. Bolsonaro vai além, defende o desmatamento da Amazônia e a integração dos povos originários na sociedade abrangente.
Num contexto europeu, essa fúria destrutiva parece-me longe de ser aceita. Lembro-me de cobrir uma manifestação de neonazistas, os skinheads, em Dresden, quando trabalhava na Alemanha. Quase todos que entrevistei manifestavam alguma preocupação com o meio ambiente.
Uma outra característica que aproxima a direita brasileira da norte-americana é o apoio fervoroso de alguns grupos evangélicos. A decisão de transferir a embaixada brasileira de Tel-Aviv para Jerusalém, comum a Donald Trump e Bolsonaro, não significa apenas alinhamento a Israel. Mas basicamente é a tentativa de tornar real uma profecia comum aos evangélicos, que prevê uma grande guerra na região na qual os sobreviventes aderem ao cristianismo. Não creio que essa profecia seja bem-vista por Israel, que, de qualquer forma, seria beneficiado com a transferência.
O velho Jean-Marie Le Pen, na França, não tinha condições mentais de se reinventar, por isso foi varrido pela filha. Suspeito que Bolsonaro também tenha dificuldade de análise. Parece muito dominado pelos próprios sentimentos e foi incapaz, por exemplo, de cumprir o ritual de um derrotado nas eleições.
No momento de grande indignação com a política tradicional, ele encarnou o homem simples que fala palavrões e não esconde seus pensamentos, mesmo os obscenos. Mas a História coloca problemas que um homem limitado nem sempre pode resolver. Sobretudo quando se cerca de obedientes nulidades.
Não haverá vácuo. Hamilton Mourão fez um discurso tentando preenchê-lo na passagem de ano. Governadores de Estados importantes, como São Paulo e Minas, podem também aspirar à liderança.
O último discurso de Bolsonaro revelou que ele tinha algum medo do futuro. Seus eleitores mais moderados se decepcionaram; os que o consideravam mito vão reclassificá-lo na galeria de heróis como Mickey, Pluto e Pato Donald.