A sociedade brasileira – e aqui não há novidade – está profundamente dividida no que concerne às afiliações ideológicas e partidárias dos cidadãos. Não há no País um centro político democrático, ao menos não como força eleitoral, capaz de conquistar corações e mentes da maioria pelo apelo a consensos mínimos. Sobressai a estridência dos polos. Prevalece o distúrbio comunicacional – muita gritaria e pouca escuta. Ambos com sequelas terríveis até para o ambiente privado dos indivíduos. Quantos laços familiares, de trabalho e de amizade foram desfeitos nos últimos anos em virtude de posições políticas tidas como irreconciliáveis?
A intentona perpetrada por radicais bolsonaristas no dia 8 passado só aumentou a percepção de que o Brasil virou uma terra de gente infensa ao diálogo e incapaz de respeitar diferenças de opinião. É evidente que não há diálogo possível com extremistas; menos ainda com extremistas criminosos. A eles, o isolamento e o peso da lei. Mas, em geral, essa percepção não só está errada, como deve ser ativamente desconstruída – desde a mais alta autoridade executiva da República, o presidente Lula da Silva, até o mais anônimo dos cidadãos.
A grande maioria dos brasileiros, incluindo muitos dos que votaram em Jair Bolsonaro, condena o emprego da violência como forma de ação política. Há, portanto, saídas para essa intolerância que paralisa o País, desde, é claro, que autoridades e cidadãos, imbuídos de boa-fé, ajam para superá-la. Como disse ao Estadão o cientista político Miguel Lago, “a capacidade de condenar essa atividade (o assalto contra as sedes dos Poderes) é um prenúncio de que é possível arregimentar forças em defesa da civilidade”.
O desafio do País não é superar as divergências políticas entre os cidadãos, mesmo as mais aferradas. Elas são próprias de qualquer democracia digna do nome. O desafio é voltar a trilhar um caminho de amadurecimento democrático no qual a coabitação seja possível. Para isso, há que reconstruir um consenso, entre tantos outros, em torno do respeito inarredável ao grande pacto que nos une como cidadãos: a Constituição. A Lei Maior protege a livre manifestação de divergências e, ao mesmo tempo, coíbe a intolerância.
A coabitação entre divergentes só é possível em um ambiente de tolerância e respeito às leis, vale dizer, quando ideias, valores e visões de mundo por vezes conflitantes – desde que não configurem crimes – não são desqualificados a priori por quem se acha o único portador da “verdade” ou de uma ideia do que seja o “bem”; tampouco seus defensores são tratados como inimigos de uma facção rival por aqueles que pensam diferente.
Idealmente, o encerramento da eleição deveria sobrestar essas diferenças, ao menos até o próximo ciclo eleitoral, e unir os cidadãos em torno de um projeto comum de País. Mas isso não aconteceu. Ao contrário.
Agora cabe ao vencedor, o presidente Lula, tomar a iniciativa de chamar todos os brasileiros ao diálogo, de mostrar, e não apenas com palavras, que, de fato, governará para todos. Na prática, isso significa ampliar as forças políticas presentes em seu governo, contemplando o maior número possível de interesses da sociedade. Dividindo poder entre uma frente realmente ampla e democrática.
A intolerância política não desaparece de uma hora para outra por força de vontade; é preciso ações concretas para isolar os extremistas e dialogar com os divergentes que “estão inseridos no jogo democrático”, como bem disse Miguel Lago.
Lula será um presidente bem-sucedido se entender que sua vitória eleitoral não foi apenas sua ou do PT. Que o presidente compreenda a dimensão de sua responsabilidade histórica.