(Damião Lucena, jornalista e historiador, no Capítulo XII, do livro Patos de todos os tempos*)
A primeira peleja, de que se tem notícia em todo o mundo, aconteceu em 1870, no Beco da Igreja de Nossa Senhora da Guia, mais tarde dedicada a Virgem da Conceição, inserido na Feira da Fruta, envolvendo dois afamados cantadores da época: Inácio da Catingueira e Romano da Mãe D´água, o primeiro escravo de Manoel Luiz de Abreu e o segundo um pequeno proprietário rural, na Serra do Teixeira.
A importância desse acontecimento cultural pode ser detectada através das citações de grandes escritores: Luiz Nunes (Inácio da Catingueira – o gênio escravo), Nelson Lustosa Cabral (Paisagens do Nordeste); Luiz Cristóvão dos Santos (Brasil de Chapéu de Couro); Coutinho Filho (Violas e Repentes); Padre Manoel Otaviano (Inácio da Catingueira); Luiz da Câmara Cascudo (Vaqueiros e Cantadores); Chagas Batista (Cantadores e Poetas Populares); Leonardo Mota (Violeiros do Norte), Nestor Diógenes (Brasil Virgem); Antônio Freire (Revolta e Repentes) e Graciliano Ramos (Vivente das Alagoas).
O encontro de pura poesia poderia ter sido imortalizado na história de Patos, no entanto, a estátua de Inácio da Catingueira, que chegou a ser confeccionada por um artista paraibano, a pedido da prefeitura, permaneceu no almoxarifado e acabou destruída pela ação do tempo, somada à falta de conservação. Tomando por base alguns fragmentos da história, fazemos constar nesta publicação, alguns versos fisgados na inesquecível peleja cultural que jamais será apagada da memória sertaneja.
Negro, me diga o seu nome
Que eu quero ser sabedor,
Se é solteiro ou casado,
Aonde é morador,
Se acaso for cativo,
Diga quem é seu senhor.
Eu sou muito conhecido,
Aqui por essa ribeira,
Este é o seu criado
Inácio da Catingueira.
Dentro da Vila de Patos,
Compro, vendo e faço feira.
Negro, vieste a Patos
Procurando quem te forre
Volta pra trás, meu negrinho
Que aqui ninguém te socorre;
E quem cai nas minhas unhas
Apanha, deserta ou morre.
Seu Romano, eu vim a Patos
Pela fama do senhor,
Que me disseram que era
Mestre e rei de cantador;
E que dentro de um salão
Tem discurso de doutor.
Inaço, que andas fazendo
Aqui nesta freguesia,
Cadê o teu passaporte,
A tua carta de guia
Aonde tá teu sinhô
Cadê a tua famia.
Seu Romano, eu sou cativo,
Trabalho pra meu sinhô…
Quando vou para uma festa
Foi ele quem me mandou,
E quando saio escondido
Ele sabe pronde eu vou.
Inaço, deixa-te disto,
Não te posso acreditá
Pois eu também tenho nego
E só mando trabaiá…
Como é que teu sinhô
Vai te mandá vadiá?
Inaço da Catinguera,
Escravo de Mané Luiz
Tanto corta como risca,
Como sustenta o que diz!
Sou vigário capelão
E sacristão da matriz.
Este aqui é seu Romano
Dentaria de elefante,
Barbatana de baleia,
Força de trinta gigante,
É ouro que não mareia,
Pedra fina e diamante.
Inaço da Catinguera
É nego desengonçado:
Abre cacimba no seco
Dá em baixo do muiado…
Aperta sem sê troquês,
Corta pau sem sê machado.
Romano, o meu martelo,
Por bom ferreiro é forjado;
Tanto ele é bom de aço,
Como está bem temperado;
A forja onde ele foi feito
É toda de aço blindado.
Seu Romano, eu lhe garanto
Que resisto ao seu martelo;
Ao talho do seu facão,
Ao corte do seu cutelo;
Se eu morrer na peleja,
Lhe vencerei no duelo.
Francisco Romano Caluête morreu repentinamente, no dia 1º de março de 1891, com cerca de 50 anos de idade. Leonardo Mota, saudoso folclorista, no seu livro Violeiros do Norte, editado em 1925, fez citar que “Romano é uma espécie de tipo lendário, não celebrizado pelos compêndios de literatura pátria, mas imortalizado na reverência das populações sertanejas de todo o Nordeste”. Silvino Pirauá, um dos seus grandes amigos escreveu alguns versos sobre o necrológio, dentre os quais os seguintes:
Na era noventa e um,
No centro Paraibano,
Dentro do Termo de Patos,
Em março do dito ano,
No primeiro desse mês,
Morreu Francisco Romano.
Ele, antes de morrer,
Tinha em casa destinado
De ir buscar uma imagem
Com quem tinha se apegado,
Mas antes dessa viagem,
Primeiro foi ao roçado.
Pegou o chapéu, saiu,
Com uma faca na mão
E uma foice no ombro,
Foi tapar um boqueirão,
Embora fosse domingo,
Mas havia precisão.
Justamente foi o tempo
De a hora lhe ser chegada…
Romano, dentro da roça,
Morreu de morte apressada:
Apagou-se aquele espírito,
Seu corpo virou em nada.
Foi um dia de domingo
Esse caso acontecido…
Nesse dia, às quatro horas,
Foi Jesus Cristo servido:
Duma morte violenta
Romano foi falecido.
Debruço caiu em terra
Com a tal faca na mão,
A outra mão sobre o peito,
Em riba do coração,
A foice do outro lado,
Bem junto dele, no chão.
Nesse entre, um filho dele,
Tendo de ir ao roçado,
Pra dar água a uns animais,
Por seu mano ter mandado,
Chegou, foi vendo o cadáver,
No chão, morto, istoporado.
O menino, quando viu,
Ficou cheio de agonia
De ver seu querido pai
Se acabar naquele dia…
Foi levar a notícia à mãe,
Coitada, que não sabia!
Choroso voltou pra traz
Do caso que aconteceu,
Foi chegando e foi dizendo:
Ruim notícia trago eu!
Minha mãe, meus irmãozinhos,
Meu querido pai morreu!
Em casa o choro foi tanto,
Que fez um grande alarido,
A mulher correu pra roça,
À procura do marido,
Não morreu de sentimento
Porque Deus não foi servido.
Atrás da pobre mulher
O povo todo seguiu…
Quando ela viu o cadáver,
Por cima dele caiu,
A prece que fez ao céu
Parece que Deus ouviu.
Voltaram tristes pra casa,
O choro ninguém continha,
Romano veio numa rede,
A mulher em braços vinha,
Mandaram comprar mortalha
Na rua, de noitezinha.
Eu senti a morte dele,
Que ninguém não esperava!
Quando me veio a notícia
Que Romano morto estava,
Logo me veio à lembrança
O tempo em que nós cantava.
Conheço, desde esse dia,
Cantador entusiasmado…
Todo mundo quer cantar,
Cada qual dá seu recado
Porque quem se respeitava
Já está em cinzas tornado.
E segue o folclorista Leonardo Mota: “Mas o povo também cultua a memória do digno rival de Romano – esse prodigioso poeta negro que foi Inácio da Catingueira”. Referenciando o poeta Severino Perigo, cantador da Vila de Patos também de cor preta, que no âmbito da poesia defendia o representante da raça como o melhor e lhe fornecera fragmentos de uma justa da dupla:
Eu Soube que Catingueira
Tem fama de Piancó:
Dentro da Vila de Patos
Eu tiro-lhe o caracó,
Boto-lhe linha e compasso,
Desbasto com a minha enxó.
Seu Romano, se vier,
Venha bem apadrinhado
Mode ver como é que apanha
Padrinho com afilhado…
Depois, não saia dizendo
Que o Catingueira é malvado!
Toro-te a língua da boca,
Te troncho o pé do nariz,
Te toro o beiço de cima:
Ficas como um chafariz…
Caíste nas minhas unhas
Nunca mais tu és feliz.
Seu Romano, em minhas unhas,
Meu Mestre, você traqueia:
Troncho-te o beiço de baixo,
Corte-te as duas oreia,
Tiro-te a língua da boca:
Eu já vi marmota feia.
“No inventário de bens deixado por seu primitivo senhor, Inácio da Catingueira era arrolado por um preço equivalente ao triplo do de qualquer dos demais escravos, o que deixa avaliar a alta e merecida conta em que era tido. Falecido em 1879, não foi sepultado na fazenda, como o eram todos os cativos: o cadáver do grande cantador negro foi transportado, em rede, para o cemitério da povoação de Teixeira e ali o inumaram, num preito póstumo de piedade e carinho”. Também consta no livro Violeiros do Norte: “Formidável negro esse Inácio da Catingueira! A que alturas não teria ele ascendido na sociedade brasileira, como Patrocínio e Cruz e Souza, se não fora a fatalidade da sua condição de escravo e outro tivesse sido o palco da atuação de seu gigantesco espírito! Dele se pode repetir o que Emílio de Menezes disse de Patrocínio: Negro feito da essência da brancura, Sois porejava pela pele escura…”.
*Quem estiver interessado em adquirir um exemplar da obra ‘Patos de todos os tempos’ pode se dirigir a Garagem Cultural, que fica na Rua Deodoro da Fonseca, nº 180, centro de Patos, ou solicitar pelo telefone (83) 98140-1462, em João Pessoa (83) 99991-2944.