Modernização da entrada no serviço público foi aprovada na Câmara e está em discussão no Senado
Os concursos públicos apenas com provas simples e objetivas podem estar com os dias contados. A necessidade de profissionais mais capacitados para as exigências específicas do serviço público tem levado ao debate sobre a necessidade de modernizar o processo de entrada do servidor.
As discussões caminham para uma ideia de provas mais analíticas, que avaliem conhecimentos, habilidades e competências para cada função.
Essa reportagem faz parte da série Profissional Público do Futuro, iniciativa do núcleo Vida Pública em parceria com a República.org, entidade dedicada à melhoria da gestão de pessoas no serviço público.
A proposta mira a seleção para a contratação de servidores federais, mas autoriza que estados e municípios possam definir normas próprias.
“Existe uma certa discrepância entre a experiência federal, um pouco mais sofisticada, e a dos estados e municípios. Temos alguns estados que têm larga experiência e uma estrutura grande, mas a maioria, não. E os municípios, em geral, são muito frágeis nessa matéria”, diz Carlos Ari Sundfeld, professor titular da FGV Direito de São Paulo.
O texto aprovado na Câmara dos Deputados em agosto de 2022 e que está no Senado considera como formas válidas para a avaliação provas escritas objetivas ou dissertativas e provas orais que cubram conteúdos gerais ou específicos, e também a elaboração de tarefas próprias para o cargo preterido.
Fabrício Barbosa, presidente do Consad (Conselho Nacional de Secretários de Administração) e secretário de Administração e Gestão do Amazonas, avalia que a manutenção do mesmo antigo formato de concurso público vai na contramão da evolução das características hoje exigidas do servidor.
“Ter concursos de conhecimentos genéricos, que não sejam de conhecimentos específicos, principalmente aqueles que não levam em consideração algumas questões de habilidades sociais, é algo que prejudica muito a qualidade desse recurso humano que vem sendo colocado para dentro do serviço público”, diz Barbosa.
Para especialistas, os concursos públicos não conseguem examinar com exatidão aptidões que vão além dos conhecimentos formais.
Isso ocorre, entre outras razões, porque essa aferição muitas vezes está baseada em provas objetivas, em que há meramente a marcação de um “x”, afirma o professor Fernando de Souza Coelho, do curso de gestão de políticas públicas da USP.
Sundfeld entende que há uma padronização dos concursos sem atentar para as características dos cargos e, o mais grave, sem levar em conta habilidades e competências. Por isso, ele defende a necessidade de provas específicas.
“Trata-se de saber se ele [candidato] sabe lidar com questões complexas, se ele tem uma boa relação interpessoal, aspectos difíceis de aferir por concursos padronizados, como prova de múltipla escolha”, diz o professor da FGV.
É essencial que exista uma fase do concurso público, sobretudo nos cargos mais delicados, que analise a atuação do sujeito diante de problemas que ele vai enfrentar para verificar se ele pode ser aprovado no concurso
Em países como Chile, Estados Unidos, Reino Unido e Austrália, o servidor público pode ser contratado por diversos meios de avaliação, de indicações políticas a entrevistas, provas específicas, análise de currículos, entrevistas, provas orais e seleção por empresas externas e independentes.
A modernização também joga luz sobre a necessidade de concurso para cargos de menor exigência técnica. A ideia é que algumas funções possam entrar no regime de contratação temporária, principalmente aquelas nas quais a rotatividade é muito grande. Isso já acontece em alguns estados.
“Nas grandes administrações estaduais, a admissão de temporários para preencher um percentual de quadros é sempre por processo seletivo competitivo. E são experiências interessantes, pois garantem que haja profissional permanentemente em sala de aula, em hospital, nas clínicas”, diz Sundfeld.
Para o presidente do Consad, o custo também pesa na discussão. “Hoje é muito complexo fazer concursos públicos, que são processos caros para cargos que poderiam ser preenchidos de uma forma mais simplificada.”
Porém, algumas entidades sindicais são contra o modelo proposto pelo projeto. Para Daniela Villas Boas Westfahl, Diretora de Imprensa e Comunicação do Sindiquinze (Sindicato Profissional dos Servidores da Justiça do Trabalho da 15ª Região), a lei tem brechas.
“A lei não atende totalmente aos requisitos de moralidade, impessoalidade e eficiência do serviço público, abrindo brechas para exploração de concurseiros e utilização de apadrinhamento e cabides, que já haviam sido extirpados. A utilização da modalidade online de prova e de cursos de formação são exemplos dessas brechas.”
Para o professor da USP, não é apenas o processo de entrada que deve ser modernizado no serviço público. Mais do que modernizar o concurso, o que deve ser aprimorado é o acompanhamento do servidor no seu início de carreira na gestão pública.
“Se fizer um estágio probatório bem feito, com metas, com aferição de desempenho, consegue ao final de três anos dizer ‘essas pessoas cumpriram adequadamente, têm a vocação de fato’. Mas, infelizmente, o estágio probatório no Brasil é quase que na maioria das vezes uma peça de ficção”, diz Coelho.
INDÚSTRIA DOS CONCURSOS
Um fator que influencia o debate sobre o modelo de entrada no serviço público é o fato de a preparação para os concursos públicos ter virado um mercado.
“É uma indústria marcada fortemente por grandes conglomerados que preparam as pessoas, até organizam a viagem das pessoas —também uma indústria de turismo de negócios”, diz Coelho.
“Interessa para os cursinhos que aquilo que se avalia no concurso público seja algo que eles sejam capazes de padronizar e de vender repetidamente, com aulas gravadas, apostilas idênticas para todos os cursos”, afirma Sundfeld.
O professor Fernando Mesquita, diretor de mentoria e coaching do Gran Cursos Online, diz discordar. Para ele, o cursinho trabalha cada vez mais com a individualização do ensino ao disponibilizar materiais mais específicos direcionados a concursos, sistema que ele considera justo por manter a impessoalidade.
Aluna do cursinho, a professora Suelen Gonçalves dos Anjos, 39, que já é servidora pública, decidiu mudar de carreira. Há dez meses se prepara para concurso público na área de gestão para Controladoria-Geral do Distrito Federal.
“Trabalho 40 horas por semana como professora e ainda estudo para o concurso. Faço aulas online, materiais de revisão e redações toda semana. É pesado, uma nova carreira, mas me sinto mais preparada”, afirma.