O bolsonarismo despreza os direitos humanos, é contrário à figura do juiz de garantias, propõe eliminar a audiência de custódia e defende a impunidade para crimes praticados por policiais no exercício da profissão. Ao longo dos últimos anos, tem sido o grande catalisador das principais ideias equivocadas sobre o sistema de Justiça. No entanto, quando seus aliados estão envolvidos em problemas com a Justiça, a equação se inverte. O devido processo legal e a imparcialidade do juiz tornam-se prioridades. Existentes desde os inquéritos das manifestações antidemocráticas, as críticas bolsonaristas contra o Supremo Tribunal Federal (STF) subiram de patamar depois do 8 de Janeiro. Teria sido instaurada, nada menos, que uma “ditadura judicial” no País.
“No Brasil, temos presos políticos. Mais do que na Venezuela, na Bolívia e no tempo do regime militar”, discursou, sem corar, a deputada Bia Kicis (PL-DF). O deputado Carlos Jordy (PL-RJ) chamou as prisões das pessoas envolvidas na invasão e depredação das sedes dos Três Poderes de “lulags”, neologismo com o nome do presidente Lula da Silva e os “gulags”, campos de trabalho forçado da União Soviética. Já o deputado General Girão (PL-RN) qualificou a situação de “Guantánamo brasileira”, em referência à prisão mantida pelos Estados Unidos em Cuba.
O direito de discordar do Judiciário, seja em que esfera for, integra as liberdades fundamentais, além de contribuir para seu melhor funcionamento. Não existe exercício imaculado do poder, e é muito positivo que Executivo, Legislativo e Judiciário se sintam cobrados e admoestados – ainda mais em situações novas, que exigem respostas inéditas do poder estatal e o risco de errar é maior. O caso do 8 de Janeiro é absolutamente excepcional, ao envolver milhares de pessoas, tipos penais novos e agressões nunca antes vistas às instituições democráticas.
Se o Estado já tem sérias dificuldades de respeitar os direitos fundamentais de pessoas investigadas em casos corriqueiros, seria ingenuidade achar que, nessa situação particular, o poder estatal se comportaria de modo diferente, oferecendo uma atuação perfeita, sem nenhum excesso ou exagero. Seja como for, é preciso exigir do poder público plena aderência à lei, sem transigir com eventuais medidas ilegais ou mal fundamentadas. Por exemplo, este jornal já criticou em editorial o modo como foram realizadas as audiências de custódia relativas aos atos do 8 de Janeiro (ver A defesa da democracia dentro da lei, 19/2/2023). A decisão sobre a necessidade de manter a prisão preventiva não foi tomada pelo magistrado que fez a audiência e teve contato com o preso. Prisão sempre exige avaliar as circunstâncias concretas de cada pessoa.
É preciso discernimento. Diante do grande número de pessoas envolvidas, é provável que haja prisões preventivas em desacordo com os requisitos legais. Elas devem ser revogadas o quanto antes, seja pelo ministro Alexandre de Moraes, seja pelo colegiado da Corte – que não deve ter receio de suspender alguma decisão do relator, quando assim for necessário. Mas eventuais equívocos e exageros – que infelizmente são coisas habituais na Justiça brasileira, como se observa, por exemplo, pelos muitos habeas corpus que são concedidos pelo STF – não transformam as pessoas envolvidas nos atos do 8 de Janeiro em presos políticos.
Essas pessoas estão sendo investigadas por ações contrárias ao Código Penal, e não em razão de expressarem uma orientação política específica. A ilustrar que não se trata de perseguição política do Supremo, a própria Procuradoria-Geral da República (PGR) já denunciou por crimes concretos centenas delas, que terão oportunidade, dentro do processo penal, de exercer seu direito de defesa.
O sistema de Justiça penal é imperfeito – e o bolsonarismo lutou e luta arduamente para piorá-lo. Mas isso não autoriza dizer que inexiste, no País, respeito às liberdades política e de expressão. Há caminhos institucionais para correção de erros judiciais. O que não há é autorização para cometer crimes impunemente. A lei vale para todos.