Para Mónica Baltodano, Lula não faz leitura adequada do regime de Daniel Ortega
Em janeiro de 1980, a ex-guerrilheira nicaraguense Mónica Baltodano esteve no Brasil a convite de Frei Betto, conheceu Luiz Inácio Lula da Silva e chamou-o para celebrar em seu país o primeiro aniversário da Revolução Sandinista, que derrubara a ditadura de Anastasio Somoza.
Meses depois, ela receberia em Manágua o então líder sindicalista brasileiro, que foi apresentado a integrantes da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) e ao socialista cubano Fidel Castro.
Agora, Mónica volta ao Brasil com um objetivo bem diferente: convencer setores da esquerda e do governo Lula de que o atual regime sandinista, capitaneado por seu ex-aliado Daniel Ortega, é uma ditadura tão violenta ou até pior que a de Somoza.
Mónica foi uma das três mulheres nomeadas comandantes da revolução em 1979 e ocupou cargos de peso no Executivo e no Congresso. Agora ela é parte do numeroso grupo de companheiros de luta de Ortega que o abandonaram após se decepcionarem com seus movimentos cada vez mais autoritários. Assim como os demais opositores, vem sendo perseguida: em fevereiro, teve a nacionalidade cassada e os bens confiscados.
Ela chegou neste domingo (9) a São Paulo e também visitará Brasília, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Não encontrará Lula, que estará na China, mas sua agenda prevê conversas com parlamentares e líderes políticos, inclusive petistas, além de palestras em universidades.
A senhora já encontrou Lula desde que se tornou opositora de Ortega? Sim. Em 2000, em um Foro de São Paulo realizado na Nicarágua, conversei com ele brevemente e expressei minha rejeição à guinada de Daniel Ortega. Nessa ocasião Lula não esteve de acordo com minha crítica.
Qual é o objetivo da sua atual visita? Quero contar por que mudei de lado e trazer informações amplas e objetivas sobre o que está acontecendo na Nicarágua, que encorajem a abandonar posições ambíguas.
Acredita que uma relação pessoal de Lula com Ortega ou do PT com o sandinismo possa explicar a falta de uma crítica enfática? É inadmissível que uma relação pessoal seja fundamento para uma política de Estado. Além disso, os dois nunca foram amigos íntimos. Quando Lula esteve preso, não houve demonstração de solidariedade por parte de Ortega.
Lula não está fazendo uma leitura adequada do que está acontecendo na Nicarágua. Não teve a compreensão de outros presidentes latino-americanos, como Gabriel Boric [presidente do Chile] e Gustavo Petro [Colômbia], de que ficar em silêncio diante de um regime tão brutal é uma vergonha.
Que efeitos uma declaração mais contundente de Lula poderia ter sobre Ortega e seu regime? Ortega tem se mostrado absolutamente indisposto ao diálogo ou à busca de uma solução pacífica, mas um governo como o de Lula, se o condenar ou conclamar a mudar de conduta, pode influenciar na modificação dessa atitude fechada para uma saída do conflito.
Nenhum ditador deve receber o apoio de uma força política ou de um governo que se qualifique como democrático. A esquerda deve se opor claramente a violações brutais de direitos humanos, mesmo que o presidente se descreva como de esquerda.
Lula propôs ao Conselho de Direitos Humanos da ONU um diálogo construtivo com Ortega. Acha isso possível? Nós vemos isso de forma positiva, mas tem que haver uma rejeição ao que Ortega está fazendo. Ortega não entende mensagens ambíguas.
A senhora diria que a maioria dos ex-companheiros de Ortega se voltou contra ele? Ninguém do gabinete dos anos 1980 respalda Daniel Ortega hoje. Ele conta com o apoio de um setor fanatizado que o trata como se fosse um deus. Tem um caráter messiânico, controla todos os poderes por meio de mecanismos mafiosos, chantagem, pressões.
Foi duro para a senhora mudar de lado? Foi e continua sendo duro constatar que os sonhos pelos quais tantos jovens deram a vida nos anos 1960 e 1970 foram traídos. Nós lutamos para que houvesse democracia, liberdade, justiça social, direitos das mulheres, dos indígenas.
Tudo isso foi colocado de lado em função de um projeto ditatorial com traços stalinistas e fascistas. É uma ditadura cruel, que tem feito sofrer demais as famílias nicaraguenses, não só com a repressão direta, mas com um acúmulo de riqueza sem precedentes.
A senhora conviveu de perto com Ortega. O que mudou para que ele agora aja assim? Ele centrou sua vida na obsessão do poder pelo próprio poder. A conversão dele e de todo seu entorno em capitalista, os acordos com o grande capital, tudo isso acabou os distorcendo.
De que maneira a expatriação afetou sua vida? A quantidade de dificuldades que ele criou para nós é incomensurável. É como se não existíssemos: fomos apagados do registro populacional, nossos sobrenomes foram retirados de nossos filhos, eles ordenaram que os bancos fechassem nossas contas, se apropriaram de nossas casas, móveis, veículos.
Eu sobrevivia do aluguel da minha casa na Nicarágua e da aposentadoria. Agora tenho renda zero, e o custo de vida na Costa Rica é alto. Eles foram à minha casa e falaram para o inquilino: ‘Agora não é mais da Mónica, é nossa. Vai ter que pagar aluguel para nós.’
O governo brasileiro se ofereceu para oferecer refúgio aos perseguidos por Ortega. O Brasil é visto como uma possibilidade para os nicaraguenses? Alguns países ofereceram a nacionalidade, mas não criaram um mecanismo especial, não avisaram as embaixadas. Isso dificulta que os expatriados considerem migrar, pois correm o risco de ficar anos esperando pela documentação. Temos avaliado as opções, mas não podemos nos mover até que esteja claro como isso vai funcionar.
RAIO-X | MÓNICA BALTODANO, 68
Militante da FSLN desde os 18 anos, foi uma das três mulheres comandantes da guerrilha que derrubou a ditadura Somoza em 1989. Foi vice-ministra e ministra, deputada pela FSLN e, na oposição, pelo Movimento pelo Resgate do Sandinismo. Cientista social e mestre em direito municipal, escreveu a obra de quatro volumes “Memorias de la lucha sandinista”. Vive exilada na Costa Rica e está entre os mais de 300 ativistas que perderam a nacionalidade e os bens por ordem de Daniel Ortega.