No início do ano, a pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR), foram instaurados no Supremo Tribunal Federal (STF) diversos inquéritos relativos ao 8 de Janeiro. Além de investigações sobre os executores – muitos deles foram presos em flagrante –, abriram-se inquéritos para apurar a responsabilidade dos autores intelectuais, dos financiadores, dos partícipes por auxílio material e das pessoas que instigaram os atos criminosos.
Agora, o STF começou a analisar as denúncias apresentadas pela PGR com base nas investigações feitas. Na segunda-feira, a Corte decidiu pela admissibilidade do primeiro conjunto de acusações contra 100 pessoas. No dia seguinte, iniciou-se a sessão virtual para a apreciação de mais de duas centenas de denúncias. Essa sessão se encerra no dia 2 de maio, mas é apenas o início de um longo trabalho. Até o momento, a PGR denunciou 1.390 pessoas pelos atos do 8 de Janeiro, envolvendo tipos penais que vão desde incitação ao crime e deterioração de patrimônio tombado até associação criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado.
O julgamento desses casos impõe múltiplos desafios ao Judiciário, a começar pelo grande número de pessoas envolvidas. É um trabalho imenso, que sobrecarrega ainda mais a já sobrecarregada estrutura da Justiça. Basta pensar que o STF, além de todas as denúncias do 8 de Janeiro, que podem se transformar em ações penais, com suas várias fases, tem muitas outras tarefas como Corte constitucional.
Mas as questões operacionais, como o grande volume de trabalho, são apenas uma parte – nem sequer é a principal – dos desafios suscitados pelo 8 de Janeiro. O grande tema é o respeito à legalidade, com a aplicação da lei penal e processual penal em circunstâncias tão excepcionais. Caminhos extralegais poderiam não apenas suscitar nulidades e impunidades – o que seria extremamente prejudicial ao País –, mas gerar uma perda de autoridade e de legitimidade da Justiça, com o risco de autores de crimes gravíssimos serem transformados em vítimas ou mesmo em heróis nacionais.
Sobre os cuidados que o STF deve ter, destacam-se alguns pontos. Até aqui, por força das próprias circunstâncias, houve acentuado protagonismo do ministro Alexandre de Moraes. Ainda que possam ser feitos reparos em sua atuação à frente dessas investigações – não existe perfeição na vida pública –, é inegável sua contribuição, por meio de diligente exercício jurisdicional, na defesa do Estado Democrático de Direito. No entanto, é chegada a hora de esse protagonismo individual diminuir.
É preciso que toda a atividade do STF relacionada aos atos do 8 de Janeiro esteja revestida do caráter colegiado da Corte, o que tem duas consequências práticas. Em primeiro lugar, o trabalho jurisdicional envolvendo os inquéritos e as denúncias sobre os atos antidemocráticos deve estar apoiado solidamente na lei e na jurisprudência do Supremo. Nos últimos anos, a Corte fez um trabalho de grande importância a respeito da Operação Lava Jato; entre outros temas, corrigiu excessos e recordou regras de competência e de imparcialidade. Toda essa jurisprudência – verdadeiro aprendizado civilizatório – não pode ser agora ignorada.
A segunda consequência diz respeito à atuação dos outros ministros do STF. A defesa em uníssono do Estado Democrático de Direito não significa concordar com tudo o que é feito ou proposto pelo ministro Alexandre de Moraes. Unanimidades baseadas em circunstâncias, e não em rigorosas avaliações jurídicas, podem ser muito perigosas, ao possibilitar transigências com a lei e com a jurisprudência da Corte.
Pode parecer que, com os casos do 8 de Janeiro, o STF tem uma tarefa impossível a realizar: num contexto de acirramento político, apurar de forma isenta as diversas responsabilidades jurídicas. Mas a missão é viável. Basta que cada ministro viva o que se pede a todo juiz: a coerência de aplicar a lei, sem preferências e sem animosidades, com a valentia de desagradar, se assim for preciso, à opinião pública.