Golpismo não é efeito colateral de remédio

By | 28/04/2023 8:58 am

Jair Bolsonaro nunca precisou de medicamentos para dar vazão aos seus desígnios liberticidas. O problema nem de longe está no remédio. O problema é o prontuário do paciente

(Editorial do Estadão, em 28/04/2023)

 

Imagem ex-libris

O ex-presidente Jair Bolsonaro escarneceu da inteligência e da memória de muitos brasileiros ao dizer, durante depoimento à Polícia Federal (PF), que publicou “por equívoco” em uma rede social um vídeo que lançava suspeitas infundadas sobre o resultado da eleição. É curioso que um “equívoco” desses tenha sido cometido logo por Bolsonaro, tido como um ás no manuseio de smartphones. Mas, vá lá. A explicação dada pelo ex-presidente é que ele estaria fora de seu juízo normal, “sob tratamento com morfina” para aliviar fortes dores abdominais. Ora, a farmacologia descreve uma série de efeitos que o uso de morfina pode provocar no organismo, mas incitação ao golpe não está entre eles. Ademais, o problema nem de longe está no remédio; está no prontuário do paciente.

Por mais estapafúrdia que tenha sido a versão apresentada por Bolsonaro à PF, que investiga a responsabilidade do ex-presidente pelo 8 de Janeiro, nem original ela é. Não faz muito tempo, a deputada norte-americana Marjorie Taylor Greene, do Partido Republicano, talvez a mais fiel adoradora de Donald Trump, publicou vários tuítes de conteúdo racista, islamofóbico e antissemita. Sob a ameaça de ter de responder por suas palavras na Justiça, a parlamentar alegou que estaria sob efeito de um ansiolítico quando fez as publicações. Foi desmentida peremptoriamente pelo laboratório, sob a alegação de que o tal medicamento poderia apresentar muitos efeitos colaterais, mas não transformava ninguém em uma pessoa preconceituosa.

É importante considerar que o vídeo golpista foi publicado por Bolsonaro no dia 10 de janeiro, enquanto ele se homiziava na Flórida. Veio a público, portanto, apenas 48 horas depois do assalto às sedes dos Poderes em Brasília perpetrado por uma horda de bolsonaristas furiosos pela vitória do presidente Lula da Silva. Ou seja, o País mal estava refeito da mais grave tentativa de subversão da ordem democrática desde a ditadura militar, enquanto Bolsonaro jogava mais gasolina na fogueira ao espalhar uma teoria da conspiração segundo a qual a vitória de Lula decorrera de um conluio entre a cúpula do Poder Judiciário, e não da supremacia da vontade popular.

Em que pese a extrema gravidade do vídeo, sobretudo tendo sido difundido por ninguém menos que o candidato derrotado na eleição, é preciso dar àquela postagem a exata dimensão que ela tem. A publicação golpista se tratou de uma entre uma infinidade de atitudes e palavras de Bolsonaro nos últimos quatro anos para desqualificar o sistema eleitoral brasileiro, seus adversários políticos e as instituições democráticas, em particular o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Nesse sentido, poder-se-ia considerar que Bolsonaro pudesse mesmo estar atrapalhado das ideias caso, ao invés de publicar o vídeo que publicou, tivesse publicado outro, de teor diametralmente oposto, reconhecendo a vitória de seu adversário na eleição. Todo o seu comportamento ao longo do mandato indicava um desfecho exatamente como aquele a que o País tristemente assistiu no segundo domingo do ano. A suposta conspirata entre ministros do STF e do TSE em tudo se coaduna com o discurso de Bolsonaro. Estranho seria se acaso ele posasse como genuíno democrata.

A versão de Bolsonaro para sua postagem sediciosa nas redes sociais soa tão abilolada que, talvez, o ex-presidente não tenha se dado conta de que ele possa ter lançado suspeitas sobre muitos atos de sua administração. Ora, Bolsonaro assumiu a Presidência depois de ter sobrevivido a um grave atentado a faca. Logo, já iniciou o mandato fazendo uso de medicações fortes para dar conta das dores decorrentes daquela agressão e de uma série de cirurgias.

Seria o caso de suspeitar que algumas de suas decisões de governo foram tomadas sob efeito desses medicamentos? É evidente que não. Eis por que o depoimento de Bolsonaro à PF não se prestou a outra coisa senão a uma tentativa de tirar dos ombros do ex-presidente a responsabilidade por ter incitado, para dizer o mínimo, uma insurreição contra sua derrota.

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About Luiz Gonzaga Lima de Morais

Formado em Jornalismo pelo Universidade Católica de Pernambuco, em 1978, e em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, em 1989. Faz radiojornalismo desde março de 1980, com um programa semanal na Rádio Espinharas FM 97.9 MHz (antiga AM 1400 KHz), na cidade de Patos (PB), a REVISTA DA SEMANA. Manteve, de 2015 a 2017, na TV Sol, canal fechado de televisão na cidade de Patos, que faz parte do conteúdo da televisão por assinatura da Sol TV, o SALA DE CONVERSA, um programa de entrevistas e debates. As entrevistas podem ser vistas no site www.revistadasemana.com, menu SALA DE CONVERSA. Bancário aposentado do Banco do Brasil e Auditor Fiscal do Trabalho aposentado.

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