Envergonha, entristece, assusta e revolta constatar que o abismo educacional no Brasil é ainda mais profundo do que se imaginava. O ensino básico é frequentemente usado como referência para ilustrar o despreparo escolar no País. Ficou provado que essa “base” não está relacionada apenas ao período intermediário ou final do ensino fundamental. Vem dos primeiros passos, da pré-escola. É injusto com a infância, uma negação de seu direito constitucional. É, para resumir, uma covardia do País em relação às suas crianças.
Somente neste ano, com a padronização de parâmetros e a fixação de uma linha de corte no exame do Sistema Nacional de Avaliação Básica (Saeb), a verificação em toda a rede de ensino dará ao País a noção exata do nível de alfabetização de suas crianças. Já não era sem tempo. Mas não deixa de chamar a atenção o atraso do Brasil em adotar um monitoramento minucioso tão essencial.
Não será surpresa se uma pormenorização do exame – caso haja este tipo de detalhamento – evidenciar realidades ainda mais dramáticas na separação por cor, raça e segmento social. No ano passado, um estudo da ONG Todos Pela Educação revelou que os prejuízos deixados pela pandemia de covid para crianças em fase de inserção no universo escolar foi proporcionalmente maior para aquelas já penalizadas pelas desigualdades no País.
Com base nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do IBGE, o levantamento da instituição mostrou que, entre 2019 e 2021, o total de crianças de 6 e 7 anos que não sabiam ler e escrever aumentou 66,3%. Entre as pretas e pardas, o déficit de alfabetização aos 7 anos passou de 28,2% em 2019 para 44,5% em 2021, enquanto nas brancas o aumento foi de 20,3% para 35,1%. O recorte por nível social mostra o aumento de 33,6% para 51% de crianças pobres ainda não alfabetizadas; dentre as crianças ricas, o aumento foi de 11,4% para 16,6%.
Se o desafio para elevar a qualidade de ensino no Brasil já era grande antes da covid, depois da pandemia o fosso se ampliou. É urgente que o sistema de alfabetização abandone de vez a velha cartilha do bê-á-bá para se dedicar ao desenvolvimento da compreensão e da autonomia já nos primeiros contatos do aluno com a escola. Assim é formada, ao longo do tempo, a capacidade intelectual e o pensamento crítico tão necessários à qualificação dos jovens.
A “escolinha”, “prezinho”, “jardim”, ou qualquer outra denominação que se dê ao início da vida escolar, é a primeira abertura orientada do pensamento. É esse poder de raciocínio que vai facilitar, nos anos posteriores, o entendimento das diversas disciplinas, a compreensão dos textos. Nos primeiros passos de desenvolvimento da criança formamos a massa crítica do País.
“Precisamos educar os alunos para serem pensadores autônomos e criativos”, resumiu a educadora Cláudia Costin no fórum Reconstrução da Educação: o que o Brasil precisa para uma escola pública de qualidade, promovido pelo Estadão. Isso significa que a escola deve atuar não apenas como um veículo de transferência de conteúdo, mas, principalmente, como um instrumento que ensina a pensar.
No mundo adulto nos acostumamos ao conceito de analfabetismo funcional para descrever a incapacidade de alguns indivíduos que, apesar de reconhecerem letras e números, não conseguem captar a mensagem daquilo que leem. Decoraram os símbolos, mas têm dificuldade de interpretar a ideia central do texto. Ocorre, inclusive, com pessoas que concluíram o ensino fundamental, ou mesmo o nível médio, como um retrato trágico da baixa qualidade que lhes foi ofertada. É essa a realidade de um terço dos brasileiros. Algo que só mudará com uma revolução na base escolar – que já deveria ter começado.
Comentário nosso
Isto é uma ironia do progresso. Antigamente não tinhamos creches, nem jardimzinhos, mas muitas mães, que geralmente só se dedicavam ao lar, tinham o cuidado de ensinar as primeiras letras aos seus filhos ou colocá-oas numa escolhinha particular para aprender o “abc” e cobravam deles quando chegavam em casa o que tinham aprendido. E, muitos de nós, quando iniciávamos, o chamado curso primário, já estávamos alfabetizados. Alguns eram colocados já no segundo ano primário porque em casa já tinhamos aprendido o suficiente para mudar de ano. Hoje com a obrigação de trabalhar fora, as crianças ficam por conta das creches e jardins, que nem sempre se empenham o suficiente para ensinar as primeiras letras. Vamos ver se o Governo dá uma sacudida nestas escolinhas para ver se as nossas crianças “desasnam” mais cedo. (LGLM)