A democracia resistiu aos abusos de populistas como Boris Johnson, Donald Trump ou Jair Bolsonaro. Agora, o escrutínio desses abusos impõe desafios à política e à Justiça de seus países
(Editorial do Estadão, em 19/06-2023)
No centro desses testes estão três ex-incumbentes populistas: Donald Trump, Boris Johnson e Jair Bolsonaro. Os três fizeram carreira estimulando um culto à personalidade, apresentando-se como vingadores do “povo” genuíno contra “elites” corruptas e proclamando-se nacionalistas nostálgicos, indispensáveis para restaurar a grandeza da pátria. Com essa autoatribuída missão, de posse do mandato popular, os três se julgaram livres para romper convenções e afrontar instituições. Em parte por isso, os três foram rejeitados pela vontade popular – Trump e Bolsonaro, diretamente pelas urnas, e Johnson, pelos representantes eleitos no Parlamento.
Além do sistema democrático, o sistema de Justiça de seus países – ao contrário de outros, como Rússia, Turquia, Hungria ou Venezuela – resistiu às suas tentativas de empregar a lei como arma contra adversários. Agora que estão fora do poder, a Justiça enfrentará um novo teste. Os abusos de Johnson não chegaram a extrapolar a esfera política, mas os de Trump e Bolsonaro estão sob escrutínio do Judiciário.
No dia 9, Johnson, ante a iminência de um inquérito parlamentar que julgaria se ele mentiu a respeito de festas clandestinas durante os lockdowns, renunciou ao seu mandato legislativo. Na mesma semana, Trump, já o primeiro ex-presidente a ser indiciado por crime – pela Corte do Estado de Nova York sob acusação de violação de regras eleitorais –, tornou-se o primeiro indiciado por crimes federais – por, alegadamente, reter documentos sigilosos. No dia 22, Bolsonaro será julgado no Tribunal Superior Eleitoral pela acusação de abuso do poder político.
Tais processos afirmam o princípio basilar do Estado de Direito: ninguém está acima das leis. Mas sua sensibilidade política impõe um novo desafio. Se antes se testou a independência da Justiça, agora se testará sua isenção. Se antes ela resistiu a ser um instrumento do poder político, agora deve resistir a ser um instrumento de retaliação política.
A Justiça, por óbvio, deve ser sempre imparcial. Mas, em casos em que suas decisões impactam deliberações da vontade popular, não basta ser imparcial, é fundamental parecer. Não basta a observância rigorosa dos ritos legais, é preciso especial acurácia com a publicidade dos processos, justamente para imunizá-los contra a desvirtuação de facções políticas, seja para se martirizar, para se vingar ou para desmoralizar a própria Justiça.
Johnson, Trump e Bolsonaro já estão alardeando “perseguição política”. No caso de Johnson, a implausibilidade é mais evidente: sua deposição e a atual investigação foram corroboradas por membros de seu próprio partido, que têm legitimidade para impedir que ele concorra novamente pela legenda. No caso de Trump, o veredicto final virá da vontade popular. Mesmo condenado, ele pode concorrer. É um sintoma do mal-estar da democracia americana que ele seja o favorito do partido Republicano e que seus partidários estejam, de antemão, comprando sua tese de perseguição política. De todo modo, os maiores riscos e responsabilidades restam na esfera política. Já no caso do Brasil, recaem sobre a Justiça. Ao decidir sobre a elegibilidade de Bolsonaro, ela precisa mostrar que sua função não é livrar a democracia dos “maus” políticos – essa é tarefa do eleitor –, mas somente dos que cometem crimes. Ao desafio corriqueiro de aplicar a lei sem excesso nem leniência, sem temor nem favor, soma-se o de resistir à tentação de ser um tribunal político. Ao fim e ao cabo, contudo, ambos são um só e mesmo desafio.