Novos testes para o Estado Democrático de Direito

By | 19/06/2023 5:00 am

A democracia resistiu aos abusos de populistas como Boris Johnson, Donald Trump ou Jair Bolsonaro. Agora, o escrutínio desses abusos impõe desafios à política e à Justiça de seus países

(Editorial do Estadão, em 19/06-2023)

 

Imagem ex-libris
Quando se fala das ameaças do populismo à democracia é importante lembrar que não basta ao Estado ser “Democrático”, é preciso que seja também “de Direito”. A legitimidade dos representantes políticos depende da escolha popular, mas também do respeito à lei, tal como interpretada pelo Judiciário. Em contrapartida, a Justiça deve evitar se imiscuir em deliberações políticas via interpretações extensivas da lei. O equilíbrio desse sistema será, mais uma vez, testado em velhas democracias, como a dos EUA e do Reino Unido, e em novas, como a do Brasil.

No centro desses testes estão três ex-incumbentes populistas: Donald Trump, Boris Johnson e Jair Bolsonaro. Os três fizeram carreira estimulando um culto à personalidade, apresentando-se como vingadores do “povo” genuíno contra “elites” corruptas e proclamando-se nacionalistas nostálgicos, indispensáveis para restaurar a grandeza da pátria. Com essa autoatribuída missão, de posse do mandato popular, os três se julgaram livres para romper convenções e afrontar instituições. Em parte por isso, os três foram rejeitados pela vontade popular – Trump e Bolsonaro, diretamente pelas urnas, e Johnson, pelos representantes eleitos no Parlamento.

Além do sistema democrático, o sistema de Justiça de seus países – ao contrário de outros, como Rússia, Turquia, Hungria ou Venezuela – resistiu às suas tentativas de empregar a lei como arma contra adversários. Agora que estão fora do poder, a Justiça enfrentará um novo teste. Os abusos de Johnson não chegaram a extrapolar a esfera política, mas os de Trump e Bolsonaro estão sob escrutínio do Judiciário.

No dia 9, Johnson, ante a iminência de um inquérito parlamentar que julgaria se ele mentiu a respeito de festas clandestinas durante os lockdowns, renunciou ao seu mandato legislativo. Na mesma semana, Trump, já o primeiro ex-presidente a ser indiciado por crime – pela Corte do Estado de Nova York sob acusação de violação de regras eleitorais –, tornou-se o primeiro indiciado por crimes federais – por, alegadamente, reter documentos sigilosos. No dia 22, Bolsonaro será julgado no Tribunal Superior Eleitoral pela acusação de abuso do poder político.

Tais processos afirmam o princípio basilar do Estado de Direito: ninguém está acima das leis. Mas sua sensibilidade política impõe um novo desafio. Se antes se testou a independência da Justiça, agora se testará sua isenção. Se antes ela resistiu a ser um instrumento do poder político, agora deve resistir a ser um instrumento de retaliação política.

A Justiça, por óbvio, deve ser sempre imparcial. Mas, em casos em que suas decisões impactam deliberações da vontade popular, não basta ser imparcial, é fundamental parecer. Não basta a observância rigorosa dos ritos legais, é preciso especial acurácia com a publicidade dos processos, justamente para imunizá-los contra a desvirtuação de facções políticas, seja para se martirizar, para se vingar ou para desmoralizar a própria Justiça.

Johnson, Trump e Bolsonaro já estão alardeando “perseguição política”. No caso de Johnson, a implausibilidade é mais evidente: sua deposição e a atual investigação foram corroboradas por membros de seu próprio partido, que têm legitimidade para impedir que ele concorra novamente pela legenda. No caso de Trump, o veredicto final virá da vontade popular. Mesmo condenado, ele pode concorrer. É um sintoma do mal-estar da democracia americana que ele seja o favorito do partido Republicano e que seus partidários estejam, de antemão, comprando sua tese de perseguição política. De todo modo, os maiores riscos e responsabilidades restam na esfera política. Já no caso do Brasil, recaem sobre a Justiça. Ao decidir sobre a elegibilidade de Bolsonaro, ela precisa mostrar que sua função não é livrar a democracia dos “maus” políticos – essa é tarefa do eleitor –, mas somente dos que cometem crimes. Ao desafio corriqueiro de aplicar a lei sem excesso nem leniência, sem temor nem favor, soma-se o de resistir à tentação de ser um tribunal político. Ao fim e ao cabo, contudo, ambos são um só e mesmo desafio.

Comentário

Category: Blog

About Luiz Gonzaga Lima de Morais

Formado em Jornalismo pelo Universidade Católica de Pernambuco, em 1978, e em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, em 1989. Faz radiojornalismo desde março de 1980, com um programa semanal na Rádio Espinharas FM 97.9 MHz (antiga AM 1400 KHz), na cidade de Patos (PB), a REVISTA DA SEMANA. Manteve, de 2015 a 2017, na TV Sol, canal fechado de televisão na cidade de Patos, que faz parte do conteúdo da televisão por assinatura da Sol TV, o SALA DE CONVERSA, um programa de entrevistas e debates. As entrevistas podem ser vistas no site www.revistadasemana.com, menu SALA DE CONVERSA. Bancário aposentado do Banco do Brasil e Auditor Fiscal do Trabalho aposentado.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *