Lobby em gabinetes na Câmara, postagens em buscador e pressão sobre evangélicos fizeram parte da estratégia da bigtech; bigtechs admitem conversas no Congresso, mas defendem direito de debater ideias do projeto
Um monitoramento do Estadão revelou que a pressão das empresas fez com que pelo menos 33 deputados mudassem de posicionamento entre a aprovação do requerimento de urgência, dia 19 de abril, e a retirada de pauta, em 2 de maio. Um site, hospedado nos Estados Unidos, foi aberto para mostrar o voto de cada um. Os internautas foram instigados a mandar mensagens para aqueles que se diziam a favor ou ainda não tinham se colocado claramente contra.
A atuação do Google foi parar na Polícia Federal. O representante da empresa, Marcelo Oliveira Lacerda, diretor de Relações Governamentais e Políticas Públicas da empresa, admitiu na investigação que a empresa gastou R$ 2 milhões na campanha contra o projeto. No depoimento, Lacerda alegou que, no início, a big tech queria apenas expor o que estava em discussão. Mas a atuação do Google foi além. Numa ofensiva contra o PL 2630, o Google incluiu abaixo da barra de pesquisa do buscador mais usado no mundo um link para um texto da empresa com o título “O PL das fake news pode aumentar a confusão sobre o que é verdade ou mentira no Brasil”.
Paulo Pimenta, ministro da Secretaria de Comunicação em evento da Associação Nacional dos Jornais (ANJ).
A nova lei pretende regulamentar as plataformas digitais pela primeira vez no Brasil e foi encabeçada pelo presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL). Os deputados aprovaram um requerimento de urgência do projeto de lei no dia 25 de abril, acelerando a tramitação, com apoio do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Lira pautou o texto no dia 2 de maio, mas retirou a proposta da pauta, com o pretexto de que o governo não tinha votos para aprovar o texto. Assim, o assunto tratado inicialmente como urgente urgentíssimo foi completamente esquecido.
Um dos alvos da pressão foi o deputado José Nelto (PP-GO), que admite a mudança de posição após a pressão das redes, impulsionada pelas big techs. “Eu era favorável a discutir o PL e, com o bombardeio que eu recebi, eu mudei de posição”, disse o parlamentar ao Estadão. Nas redes desses parlamentares, dezenas de comentários cobraram mudanças de votos e, assim que o deputado anunciava o voto “não”, havia comemoração e agradecimento.
Deputado José Nelto (PP-GO) admite ter alterado de posição no PL das Fake News
Apavorado
Presidente da Frente Parlamentar Mista da Economia e Cidadania Digital, o deputado Lafayette Andrada (Republicanos-MG) disse que o movimento dos representantes das big techs foi intenso no Congresso. “Eu recebi representantes de todas as plataformas, Google, Shopee, Youtube…. Era uma fila. Todo mundo ficou apavorado”, admitiu Lafayette Andrada.
Deputado Lafayette Andrada (Republicanos-MG), presidente da Frente Parlamentar Mista da Economia e Cidadania Digital
Os diretores da Meta Kaliana Puppi Kalache e Murillo Delgado Laranjeira também estiveram na Câmara no ápice das discussões sobre o PL 2630. Kalache informou que iria ao “plenário 11″ no dia 27 de abril, quando acessou a Câmara. No local, porém, não havia nenhuma reunião ou audiência pública naquele dia, de acordo com a agenda da Casa. Laranjeira, por sua vez, fez oito visitas entre março e maio.
As plataformas também miraram em integrantes da Frente Parlamentar do Empreendedorismo (FPE), que reúne maioria de deputados de direita e de oposição ao governo Lula. O vice-presidente do grupo, Joaquim Passarinho (PL-PA), sugeriu que as empresas se antecipassem e elaborassem novas regras para evitar que o projeto volte à pauta. “Se vocês não se anteciparem, na próxima podem perder”, disse o congressista em uma das reuniões.
Lobby da Bíblia
Em conversas com integrantes da direita e da bancada evangélica no Congresso, lobistas do Google e de outras plataformas digitais ameaçaram apagar conteúdos dos parlamentares se o PL das Fake News fosse aprovado. A lógica deles era a seguinte: a lei forçaria as empresas a classificarem o que era fake news ou não e apagar conteúdos considerados sensíveis. É a chamada “moderação de conteúdo”, tão temida por parlamentares que vivem das redes sociais para falar com o público e ganhar dinheiro com monetização.
Não por acaso, a bancada evangélica passou a difundir mensagens sobre o risco de censura a versículos da Bíblia. Um dos disseminadores desse alerta foi o então deputado Deltan Dallagnol. Na época, o relator do projeto, Orlando Silva (PCdoB-SP), classificou essas mensagens como “fake news”.
O resultado seria outro se não fosse a bancada da Bíblia. Monitoramento da Casa Galileia em redes sociais mapeou a mobilização desse grupo entre os dias 19 de abril e 2 de maio – este último apontado como o “Dia D” do Google contra o PL das Fake News. O levantamento apontou que os deputados Marcel van Hattem (Novo-RS), Kim Kataguiri (União-SP), Deltan Dallagnol (Pode-PR), Nikolas Ferreira (PL-MG), Bia Kicis (PL-DF) e Marco Feliciano (PL-SP), e o senador Magno Malta (PL-ES) lideraram o debate e as narrativas
“Teve um casamento de lobby fortíssimo. O campo evangélico percebeu que poderia aproveitar essa onda para se colocar no jogo, colocar as condições que gostaria de ter no jogo político na Câmara e as Big Techs entenderam que a linguagem religiosa poderia ser mobilizada nesse guarda-chuva da censura”, afirmou Flávio Conrado, um dos autores da pesquisa.
Tudo, menos isso
No dia 28 de abril, no meio da pressão, Lira foi a João Pessoa para participar de um evento sobre reforma tributária. Essa pauta, porém, não era sua principal preocupação. A urgência já havia sido aprovada, mas a votação do projeto corria risco. Em conversas que teve, ele responsabilizou particularmente o Google pela operação contra o PL das Fake News e já sentiu que poderia ser derrotado. Em seguida, telefonou a deputados pedindo para votar a favor. Ouviu de um deles, aliado: “Você pode pedir para eu voltar qualquer coisa, menos essa.”
A derrota do governo e de Lira na votação do PL das Fake News estabeleceu um marco para a relação do governo com o Congresso e também de Lira com seus liderados. Mesmo com a força dos dois, quando o assunto é pauta ideológica, não basta a liberação de emendas parlamentares e o poder do presidente da Câmara para convencer os deputados. No dia 2 de maio, o projeto saiu da pauta sem data para voltar. O governo, que antes trabalhava pela aprovação do projeto, não tocou mais no assunto.
Procurada, a Meta disse que mantém contatos frequentes com parlamentares e integrantes do governo. “Nossos times se reúnem regularmente com parlamentares, representantes do governo e do Judiciário, sociedade civil e acadêmicos no Brasil e no mundo. Acreditamos que esse diálogo contínuo é importante para construção de regulações claras e consistentes para todos”, diz a empresa.
A seguir a íntegra da nota do Google:
No Google, apoiamos o debate público e informado sobre a criação de medidas regulatórias para lidar com desafios sociais como o fenômeno da desinformação e ameaças ao processo democrático. Entretanto, acreditamos que é importante que eventuais propostas sejam amplamente discutidas com vários setores da sociedade e elaboradas para garantir a proteção de direitos fundamentais como liberdade de expressão, privacidade e igualdade de oportunidades para todos. Também é fundamental assegurar a manutenção de um ambiente econômico que permita a inovação e a livre concorrência, sem o favorecimento de determinados grupos ou setores.
Todos os brasileiros têm o direito de fazer parte dessa conversa e, por isso, estamos empenhados em comunicar as nossas preocupações sobre o Projeto de Lei 2630 de forma pública e transparente. O exercício das relações governamentais está baseado na liberdade de expressão e de associação previstas na Constituição Federal e é um recurso utilizado por várias instituições e empresas envolvidas no debate sobre o PL 2630.
Continuamos à disposição para contribuir com esse debate, ao mesmo tempo em que reafirmamos nosso compromisso de revisar constantemente nossos produtos e políticas para lidar com estes mesmos desafios como fizemos nas eleições de 2022 e no enfrentamento da pandemia de COVID-19.