Negros e indígenas não tiveram papel no movimento, fruto das elites
[RESUMO] Classes populares brasileiras — e sobretudo grupos mais marginalizados, como negros e índios — ficaram excluídas dos debates e das ações que levaram à Independência, assim como pouco usufruíram da emancipação do país, uma vez que o regime imperial manteve a escravidão e cerceou os direitos políticos e sociais de pessoas sem renda.
Em matéria publicada neste jornal, no último dia 20, o repórter Naief Haddad anuncia a produção de uma série televisiva que será dirigida pelo consagrado Luiz Fernando de Carvalho. Segundo a matéria, as três primeiras décadas do século 19 serão apresentadas sem ufanismo, de um ponto de vista avesso à história oficial.
O propósito é “abordar de forma crítica a visão eurocêntrica, que prevaleceu nesses dois séculos, trazendo ao primeiro plano as perspectivas dos povos africanos e indígenas”. Os indiscutíveis talentos do diretor garantem que será, certamente, uma obra marcante e original como suas produções anteriores. No entanto, creio que encontrará dificuldades em estabelecer as perspectivas dos povos africanos e indígenas naquele contexto.
Até porque, aquela cena às margens do Ipiranga, em 7 de setembro de 1822, teve poucas testemunhas — e houve mesmo controvérsias, nos anos seguintes, se deveria mesmo ser considerada a principal data da Independência. Ao que parece, nossa emancipação só começou a ficar estabelecida a partir de 1825, e tal reconhecimento em si teria sido fruto de uma manobra política.
Como revelaram as pesquisas de Maria de Lourdes Viana Lyra, foi no contexto da assinatura do tratado da Independência com Portugal, em 1825, que o Visconde de Cairu escolheu o episódio para dar protagonismo a dom Pedro, eliminando de uma só tacada todos os elementos da elite cultural e econômica do centro-sul que impulsionaram o movimento.
Os constitucionalistas da maçonaria, assim como José Bonifácio de Andrada e Silva, que tanto os perseguira, foram afastados do entorno do trono para dar lugar aos representantes dos interesses econômicos que orientariam a política nacional daí em diante.
Tudo isso sugere que devemos sempre repensar a forma como as datas oficiais vão sendo construídas e sacramentadas no imaginário nacional.
Em 1822, o povo mal ouviu falar da Independência porque esse tipo de assunto não lhe dizia respeito. Afinal, o chicote que cortava as costas das vítimas da escravidão não se tornaria menos violento se o Brasil fosse independente.
Os homens livres continuariam a ser pegos a laço, contra a vontade, para servirem na tropa (como ainda o seriam, décadas depois, os chamados “voluntários da pátria” da Guerra do Paraguai).
Mesmo os cidadãos alfabetizados, com algum nível de conhecimento, mas sem posses, não teriam direito a voto na nova ordem, pois, pelo sistema censitário estabelecido pela Constituição de 1824, que duraria até a República, só votava quem tivesse renda.
Sim, houve em 1822 agitação no Rio e mesmo guerras em outras partes do Brasil, das quais o povo participou. No entanto, as guerras sangrentas da Independência que abalaram o Norte e o Nordeste tiverem origem em disputas de interesses locais. Foram marcadas, principalmente, pelo confronto de forças portuguesas que ainda estavam no Brasil e forças comandadas pelos generais e almirantes mercenários estrangeiros contratados por dom Pedro.
A crueldade do marechal francês Pierre Labatut, na Bahia, foi tamanha que deu até origem a um personagem que passou a fazer parte do folclore brasileiro: o monstro Labatut. A morte de mais de 250 prisioneiros brasileiros, sufocados no porão de um navio, foi a marca que o comandante inglês John Grenfell deixou em sua passagem pelo Pará, sem falar do saqueio de São Luís do Maranhão pelo almirante Thomas Cochrane, que também não se distinguia pela bondade. A violência deles é que garantiu a adesão daquelas províncias à emancipação.
As Guerras da Independência têm hoje um consolidado banco de teses e dissertações que formam um corpus importante da atual historiografia. Não me parece, todavia, que demonstrem claramente que os homens do povo que delas tomaram parte tivessem plena consciência da ideia de país.
Para a maior parte das próprias elites nativas ilustradas, o sentimento regional era mais forte que o nacional, vide as duas revoluções pernambucanas, em 1817 e 1824, e a Guerra da Bahia em 1823.
Os movimentos pernambucanos tiveram caráter separatista, pois seus líderes viam o interesse local como sobreposto ao nacional; no caso da Bahia, os que se contrapunham a dom Pedro queriam sim continuar integrados à nação, mas à nação portuguesa.
Na verdade, antes de 1808, essa perspectiva do Brasil formando um todo só existia em algumas mentes ilustradas que, a partir de seus estudos e da experiência vivida na Europa, configuravam o Brasil como uma nação cuja força estaria associada à unidade dessa vasta e rica porção de terra americana.
Entre José Bonifácio e Hipólito da Costa, de um lado, e Cipriano Barata e Frei Caneca, do outro, havia uma divergência de projetos, que se acentuaria pós-1822, acerca da melhor forma de organizar o Brasil. Os primeiros eram centralistas; os segundos, federalistas. O Brasil foi sendo inventado como nação por esses homens de letras, que imaginavam um futuro grandioso para o país que surgisse da integração do imenso território.
Na verdade, até a chegada da corte em 1808, diz a historiografia, Brasil era o nome genérico que se dava às possessões de Portugal na América. Não formava um todo porque sua integração não interessava ao colonizador —era mais fácil, de Lisboa, controlar um território fragmentado, com políticas administrativas que foram sendo modificadas ao longo dos séculos sem que a concepção do “dividir para reinar” se alterasse.
As desvantagens da união das partes em um todo unificado, sob o nome de Reino do Brasil, foram sentidas pela metrópole ao longo do período em que o Rio de Janeiro foi sede da monarquia portuguesa, o que propiciou integração maior das províncias brasileiras em torno do rei.
O “dia do fico” de dom João 6º foi quase tão importante para atos que levaram à Independência quanto o de dom Pedro.
Algumas evidências apontam a preferência de dom João por ficar aqui: a recusa em embarcar na frota que a Inglaterra mandara para levá-lo de volta a Portugal, no final de 1814; a elevação do Brasil a reino, em 1815; o casamento do príncipe herdeiro com a arquiduquesa da Áustria, em 1817; e, finalmente, sua coroação como rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve, em 1818.
Esses fatos consolidavam no contexto internacional a corte do Rio como sede do poder da monarquia portuguesa.
A insatisfação em Portugal com essa preferência do rei se refletiu na imprensa liberal portuguesa que se publicava em Londres. Tanto João Bernardo da Rocha Loureiro, no Português, quanto José Liberato Freire de Carvalho, no Investigador e depois no Campeão, subiram o tom nas críticas ao rei e ao Brasil.
Em Portugal, a conspiração de Gomes Freire e sua execução em 1817 aprofundaram os desgostos dos liberais com a situação e estimularam a Revolução Constitucionalista de 1820, que começou na cidade do Porto e logo conquistou Lisboa.
Contrariado, dom João teve que voltar. Deixou aqui o filho mais velho, como garantia de que o Brasil continuaria unido a Portugal. Não continuou.
Depois da Revolução Constitucionalista de 1820, os liberais do lado de lá desconsideraram as mudanças promovidas por dom João e pela própria ação social e econômica impulsionada pela vinda da corte. Decretaram a subdivisão do reino do Brasil, o fim da condição do Rio como capital do império português e a volta do príncipe herdeiro para Portugal.
Com isso, as províncias brasileiras ficariam subordinadas diretamente a Lisboa, tal como antes de 1808. Ao longo dos quase 14 anos em que o lado brasileiro predominou, os interesses das elites econômicas de um lado e de outro do Atlântico, antes harmônicos, tornaram-se antagônicos.
As evidentes vantagens do livre comércio sobre o método colonial e a de uma estrutura administrativa interna autônoma e centralizada no Brasil fizeram com que os brasileiros do centro-sul se unissem em torno de dom Pedro, impedindo sua partida e resistindo às determinações das cortes de Lisboa. O príncipe ficou e proclamou a emancipação do país.
A Independência, como a Proclamação da República, datas oficiais mais importantes de nossa história, são produtos de interesses contrariados das elites, associados a ideários políticos então em voga, tanto no Brasil quanto no mundo. Revoluções pelo alto de que pouco aproveitaram o verdadeiro povo brasileiro.
As guerras alavancadas pelas classes populares —a dos alfaiates, dos botocudos, dos malês, Cabanagem, Balaiada, Sabinada, Canudos, dentre outras— terminaram com o massacre de seus líderes por forças comandadas por gente que entoava com emoção hinos em defesa da liberdade.
No entanto, se a massa do povo esteve ausente do debate e dos momentos de ação que culminaram com a Independência, um determinado Brasil menos desigual, mais integrado racialmente, mais democrático no acesso à educação e à cultura foi sonhado por José Bonifácio de Andrada.
Segundo o historiador Valdei Lopes de Araújo, José Bonifácio estava convencido da universalidade da razão humana, achava que negros e índios deviam formar a base da população brasileira e queria não apenas acabar com a escravidão, mas tornar seus remanescentes cidadãos orientados “pelos princípios cívicos e morais que essa condição implicava”.
Uma filosofia bem diversa da que foi adotada pelas elites que proclamaram a República, em 1889, e que deixaram à própria sorte a população negra libertada, com os efeitos que alcançaram os nossos dias.
O encontro dos ideais de José Bonifácio com os sentimentos de revolta e desejos de liberdade dos oprimidos pelo sistema escravagista não aconteceu. Ele ficou pouco tempo no poder e não foi um governante politicamente muito hábil.
Tinha pressa — e seus projetos, dentre eles o da gradativa abolição da escravatura e o da redução dos latifúndios, incomodaram os grupos que, depois de sua queda, passaram a influir efetivamente sobre a política nacional.