Por se colocar frontalmente contrário a valores fundamentais do Estado Democrático de Direito, como o respeito às minorias e ao resultado das eleições, o bolsonarismo suscitava imediata reação da sociedade e dos outros Poderes. O Supremo Tribunal Federal (STF) foi valente na defesa da Constituição, assegurando, por exemplo, a competência concorrente dos Estados e dos municípios na área da saúde pública em meio à pandemia de covid-19. Por sua vez, o Senado rechaçou os ataques bolsonaristas contra a separação dos Poderes. Rejeitou liminarmente um pedido de impeachment apresentado por Jair Bolsonaro contra um ministro do Supremo.
Agora, há uma tolerância em relação a ações não republicanas do Judiciário e do Executivo federal. Numa ação de reclamação antiga, de 2020, o ministro Dias Toffoli decretou uma espécie de terra arrasada em relação a tudo o que foi feito no País desde a Lava Jato. Seja qual for sua motivação – dizem que deseja o perdão de Lula por suas decisões passadas coniventes com o lavajatismo –, o ministro não pode atuar assim. Infelizmente, o restante do STF apenas observou passivamente. A impressão é de desleixo com a imagem do Judiciário. A prioridade seria alinhar-se aos ventos da política.
Na decisão, Dias Toffoli encarregou um órgão do Executivo federal, a Advocacia-Geral da União (AGU), para apurar os supostos danos causados pela Lava Jato. A medida é um acinte: o STF autoriza o governo Lula a usar a máquina estatal contra seus inimigos. Também não se viu resistência.
Tal é o ambiente que, no mesmo dia da decisão de Dias Toffoli, a AGU anunciou a criação de uma força-tarefa para investigar a magistratura e o Ministério Público envolvidos na Lava Jato. Assume-se despudoradamente a ideia de ação coordenada. E pior: com a força-tarefa, o Executivo assumirá nada mais, nada menos, que a função de polícia sobre a Justiça e o Ministério Público. Mas ninguém se preocupa, na estranha lógica de que só o bolsonarismo ataca a Constituição.
Outro caso preocupante é o modus operandi do ministro Alexandre de Moraes, empenhado em seguir todos os erros da Lava Jato – desde uma competência universal costurada por uma compreensão ampla de conexão até prisão preventiva com intuito de obter delação de investigado. A atuação necessária e firme do ministro em defesa da lei e das instituições democráticas no ano passado não lhe outorga um poder irrestrito agora. Ele não está acima da lei. Precisa, sim, submeter-se ao que dispõem o Direito e a jurisprudência do STF.
Não cabe desleixo com o Estado Democrático de Direito, simplesmente porque Jair Bolsonaro não está mais na Presidência da República ou porque foi declarado inelegível. O governo Lula tem de se submeter à lei. E é preciso chamar suas ações pelo seu nome. É inconstitucional o governo federal investigar magistrados e procuradores.
São muitos os fatores para esse estado de coisas. A sociedade dá mostras de exaustão depois dos quatro anos de bolsonarismo. Mas neste governo Lula há um fator novo, diferente dos outros dois. Falta um ministro da Justiça. O atual chefe da pasta parece ser o primeiro a incentivar e a aproveitar, para seus interesses políticos, a bagunça institucional vigente.
Defender a democracia não é uma ideia romântica. Trata-se de assegurar, em todas as circunstâncias, o funcionamento dos Poderes de acordo com o que determina a Constituição. Sem exceção. Não cabe ingenuidade.