Investigações sobre assessor do ex-presidente citam possível cometimento de crimes com penas altas
(Renata Galf, na Folha, em 16/09/2023)
Considerando os episódios em que Mauro Cid está sob investigação no inquérito das milícias digitais, caso ele forneça elementos em sua delação premiada que impliquem Jair Bolsonaro (PL), o ex-presidente pode ser envolvido em crimes com penas altas e que podem resultar, inclusive, em prisão.
O enquadramento das condutas ainda pode ser alterado ao longo da apuração, assim como haver a conclusão de que não houve crime.
Entre as premissas da delação está a de que o investigado confesse as condutas praticadas e aponte quem contribui com as ações, além de apresentar elementos corroborando o que foi dito.
Para que Cid ou Bolsonaro eventualmente se tornem réus, é preciso oferecimento de denúncia pelo Ministério Público —o que não ocorreu— e que a mesma seja recebida pelo Judiciário.
Tramitando em sigilo no STF (Supremo Tribunal Federal) sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes, o inquérito 4874, no qual ocorreu o acordo de delação, reúne a investigação sobre a venda de joias presenteadas por autoridades, suposta falsificação de cartão de vacina e as circunstâncias de minuta e diálogos de cunho golpista encontrados no celular de Cid.
JOIAS
Na decisão em que autorizou busca e apreensão contra diferentes agentes, entre eles, o pai de Mauro Cid, relacionada às joias presenteadas por autoridades internacionais ao ex-presidente, Moraes cita a investigação do crime de peculato, com pena de 2 a 12 anos de prisão, e ainda lavagem de dinheiro, que pode levar a punição de 3 a 10 anos de reclusão.
Para que fique configurado o crime de peculato é preciso que os presentes vendidos sejam entendidos como bens públicos, o que a defesa de Bolsonaro contesta. Além disso, uma eventual condenação do ex-presidente deve depender, por exemplo, da comprovação de que ele tenha ordenado as vendas ou que o esquema funcionava em seu benefício.
Rossana Leques, advogada criminalista e mestre em direito penal pela USP, diz que no caso do crime de lavagem de dinheiro não basta dizer que houve a venda do bem e o uso do dinheiro, sendo preciso comprovar que as operações feitas tinham a intenção de afastar a ligação dos valores obtidos de modo criminoso com a prática do crime em si.
Em agosto, Cezar Bitencourt, advogado do tenente-coronel, afirmou que Cid confessaria ter vendido as joias a mando de Bolsonaro, mas apresentou um vaivém de versões em seguida, até a proposta de delação. Segundo a revista Veja, Cid teria dito em delação que entregou o dinheiro obtido da venda de dois relógios a Bolsonaro em mãos.
Em entrevista, Bolsonaro já chegou a dizer que Cid tinha “autonomia” como seu ajudante de ordens e que não mandou ninguém vender nada nem recebeu nada.
CARTÃO DE VACINA
Em maio, Moraes determinou a prisão preventiva de Cid em decisão relacionada às suspeitas em torno da falsificação do cartão de vacinação dele, da esposa, da filha mais nova de Bolsonaro e do próprio ex-presidente.
Na decisão, o magistrado disse haver fortes indícios dos crimes de falsidade ideológica, uso de documento falso e inserção de dados falsos em sistema de informações. Especialistas consultados pela Folha avaliam que, mesmo confirmadas as suspeitas, seria improvável uma condenação pelos três crimes.
Mariângela Gama de Magalhães Gomes, professora de direito penal da USP, explica que o crime de uso de documento falso, por exemplo, já absorve o crime de falsificação –ambos têm a mesma pena, de 1 a 5 anos, no caso falsificação de documento público.
O crime de inserção de dados falsos, por sua vez, que tem a pena mais alta, de 2 a 12 anos de prisão, é o mais específico, que requer participação de funcionário público e que o dado seja incluído em um sistema.
Guilherme Brenner Lucchesi, advogado criminalista e professor de direito processual penal na Universidade Federal do Paraná, explica que quem ordenou e participou de plano já estaria envolvido no cometimento do ilícito.
Outro possível crime citado na decisão de Moraes é o de associação criminosa, o que poderia aumentar a pena, de 1 a 3 anos.
À época da prisão, em depoimento à PF, Cid não respondeu às perguntas, e sua defesa alegou não ter tido acesso a todo o conteúdo da investigação. Bolsonaro elogiou o militar e disse à PF que, se Cid cometeu algum crime, teria sido à sua revelia.
GOLPISMO
No inquérito das milícias digitais, ao descrever o que seriam os eixos de atuação da suposta organização criminosa investigada, Moraes cita os crimes de tentativa de abolição violenta do Estado democrático de Direito, que tem pena de reclusão de 4 a 8 anos de prisão, e também o de tentativa de golpe de Estado, cuja pena é de 4 a 12 anos. Como o inquérito é sigiloso, não é possível saber ao certo quais elementos apontam nesse sentido em relação a Cid.
De acordo com relatório da PF já divulgado, foi encontrada nos celulares de Mauro Cid uma minuta de um decreto de estado de sítio, além de uma espécie de estudo para a viabilidade para a intervenção das Forças Armadas para reverter o resultado das eleições de 2022 e diálogos explícitos sobre um golpe.
À época, a defesa de Bolsonaro afirmou em nota que os diálogos encontrados reforçavam que o ex-presidente não participou de articulações golpistas e que o celular do ex-assessor havia se tornado uma “simples caixa de correspondência” para as “mais diversas lamentações”.
Por ora, Bolsonaro é formalmente investigado em inquérito que apura a responsabilidade de autores intelectuais e das pessoas que instigaram os atos de 8 de janeiro. Decisão recente na investigação aponta a princípio para indícios de autoria do delito de incitação ao crime —cuja pena é de detenção, de 3 a 6 meses, ou multa.
Rossana afirma que, em tese, no caso da existência de um plano de golpe que tenha ficado apenas no plano da cogitação, não há crime. De outro lado, em relação ao 8 de janeiro seria necessário demonstrar algum nível de participação para a organização desses atos em si.
Mariângela diz que a minuta de decreto não concretizada, por sua vez, pode ser uma prova de que havia uma intenção no sentido de golpe. Ela ressalta, porém, que uma ligação do documento com Bolsonaro dependeria de provas nesse sentido.
Brenner afirma que, para a configuração do crime de incitação, seria preciso comprovar uma manifestação explícita. Falas nas entrelinhas, por exemplo, não seriam elemento suficiente. Ele também diz que não vê no 8 de janeiro a tentativa desses crimes, por não considerar que o meio empregado seria adequado para se dar um golpe de Estado.