Depois de arruinarem a democracia nas regiões que dominam, as milícias do Rio agora dificultam a instalação de empresas de transição energética. É o insulto que se soma à injúria
É o insulto que se soma à injúria. No momento em que o Brasil discute a necessidade de mudar sua matriz energética, adotando fontes sustentáveis como energia solar, descobre-se que há regiões do País que não são capazes de dar esse salto de modernidade porque vivem sob o tacão de grupos mafiosos substitutos de um Estado ausente (e, não raro, cúmplice). E não se trata de qualquer região remota, atrasada e distante do poder estatal, e sim do coração do rico e moderno Rio de Janeiro.
Apesar de toda a estupefação que a notícia causa, não chega a ser uma surpresa. A ascensão meteórica das milícias no Rio fez com que, no curto espaço de quatro anos, de 2017 a 2021, o controle territorial e populacional desses grupos paramilitares superasse a atuação de facções armadas do tráfico de drogas, como mostra o Mapa Histórico dos Grupos Armados no Rio de Janeiro. Impressiona o avanço desse “Estado bandido”, formado basicamente por um exército de policiais e ex-policiais, com o conluio de políticos que eles mesmos ajudam a eleger para acautelar sua operação ilegal.
O mapa, uma iniciativa do Instituto Fogo Cruzado e do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense, tenta suprir a lacuna oficial na elaboração de estatísticas tão necessárias ao planejamento de uma política de segurança que de fato se preste a tentar reprimir o avanço da criminalidade organizada.
As milícias são resultado, portanto, da ausência do poder público. E “vendem” ao cidadão serviços como segurança, transporte e habitação, que deveriam ser oferecidos pelo aparato estatal. Por isso, apesar da indignação, não admira que os tentáculos milicianos se estendam agora também aos investimentos do futuro, como a energia sustentável.
Agem neste caso como já atuam na “intermediação” do fornecimento de energia elétrica, gás e TV a cabo, o infame “gatonet”. E o fazem às claras, sem disfarces e sem serem perturbados. Também por meio da intimidação, formam bolsões eleitorais e, em período de campanha política, coagem eleitores a votar em candidatos que se transformam em seus representantes nas Casas Legislativas. E o cerco se fecha. A milícia avança sobre o Estado para que o Estado sustente o crime.
Assim, como escreveu Fernando Gabeira em seu mais recente artigo no Estadão, as milícias já arruinaram a democracia nas regiões que dominam, e agora partem para arruinar a transição energética. Querem condenar seus feudos ao brutal atraso que perpetua seu poder.
Por ora, até onde se sabe, trata-se de um problema circunscrito ao Rio de Janeiro, mas seria ingenuidade considerar que isso vai continuar assim. O modelo miliciano tem potencial de se alastrar com a velocidade de uma praga, como ocorreu, antes, com as facções de traficantes, que deram origem a tantos outros “comandos” pelo Brasil afora. Até mesmo o tráfico foi absorvido pela milícia, que passou a ser denominada “narcomilícia”. E a quantidade de localidades reféns desses salteadores já é maior do que o número de favelas do Rio dominadas pelo tráfico.
A eficiência das milícias na construção de seu poder contrasta com a pusilanimidade das autoridades constituídas. É nesse vácuo que a máfia prospera, deixando a vida de milhares de cidadãos à mercê do arbítrio de marginais. A menos que o Estado brasileiro considere aceitável o florescimento de uma estrutura de governo paralelo, alheia às leis pactuadas democraticamente, é preciso que esses cidadãos tenham ajuda para recobrar seus direitos e poder, junto com os demais compatriotas, participar do progresso do País.