Consulta pública não é bom instrumento para determinar direitos individuais
(Hélio Schwartsman colunista da Folha, em 03/10/2023)
Discordo do professor Geovane Ferreira Gomes, que defendeu aqui ao lado que a legalização do aborto seja decidida em plebiscito e não pelo STF. A consulta popular é um ótimo instrumento para definir certas políticas públicas, mas não para determinar direitos individuais.
Não é difícil ver por que dilemas envolvendo garantias fundamentais não se prestam à regulação por escrutínio popular. Maiorias podem ser tirânicas. Um dos paradoxos com os quais deontologistas provocam os consequencialistas é o da escravização. Se 90% da população decidir escravizar uma minoria de 10%, teríamos como resultado líquido um aumento da felicidade geral, já que mais gente seria beneficiada do que prejudicada com a medida.
Ainda que de forma menos caricata, não faltam casos históricos de maiorias relativizando ou mesmo eliminando direitos de minorias. O nazismo com suas leis de pureza racial é um bom exemplo. É para não permitir esse tipo de coisa que existem tribunais constitucionais com o poder de anular legislações tidas como violadoras de direitos fundamentais.
Faço parte do primeiro grupo. Não acho que o embrião nas fases iniciais de desenvolvimento possa ser equiparado a um indivíduo titular de direitos e penso que existe uma esfera da intimidade que está ao abrigo até do legislador. Enfim, não me parece uma boa ideia delegar a vizinhos, isto é, à sociedade, a decisão sobre o que uma mulher pode ou não fazer com suas vísceras.
Aborto é, sim, matéria para o STF decidir. Mas concentrar vários casos polêmicos num intervalo de semanas mostra que timing político não é o forte do Supremo.