Há razões para celebrar a efeméride. Mas só uma corajosa reflexão sobre as deficiências da Carta fará com que o texto siga como o farol mais brilhante das liberdades democráticas
Malgrado as suas muitas deficiências, já tantas vezes apontadas por este jornal, inclusive durante a Assembleia Nacional Constituinte, e as atribulações políticas e institucionais ao longo de sua vigência, incluindo nada menos que a cassação de dois presidentes da República por crimes de responsabilidade, o fato é que a Constituição de 1988 triunfou sobre os seus inimigos – sejam os que tentaram sabotá-la no nascedouro, sejam os que a ameaçaram como nunca nos últimos quatro anos –, ganhou os corações e mentes dos brasileiros e permitiu ao País experimentar o mais longevo período de normalidade democrática da história republicana.
Em respeito aos fatos, porém, é forçoso dizer que, em meio ao restabelecimento de direitos e garantias fundamentais que foram eliminados durante a ditadura militar (1964-1985), além da concepção de todo um arranjo institucional para sustentar o Estado Democrático de Direito, a Constituição é prolixa, disfuncional e por vezes incongruente ao longo de seus 250 artigos.
Compreende-se a sofreguidão com que os constituintes originários decidiram alçar à Lei Maior uma série de temas que, quando muito, deveriam se circunscrever à legislação ordinária. Mas essa decisão custou caro ao País. Não são poucos os direitos que só existem no papel; e não são poucos os deveres virtualmente impossíveis de serem cumpridos – que o digam milhares de prefeitos Brasil afora.
Esses defeitos, omissões e excessos da Constituição não raro têm dado azo a interpretações equivocadas, no melhor cenário, e manipulações, no pior, que perpetuam privilégios incompatíveis não só com os princípios que iluminaram a sua redação, mas com a própria ideia de República. É espantoso o grau de desassombro com que a Constituição foi violada ao longo desses 35 anos, ora de forma acintosa, ora por meios sub-reptícios, independentemente do viés político-ideológico dos governos e legislaturas de turno.
Entretanto, boa ou ruim, a Constituição é o que é, e como tal deve ser respeitada por todos e protegida por aqueles a quem a própria Lei Maior incumbe dessa nobilíssima missão: os onze ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).
Há poucos dias, o presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, ilustrou bem como o desrespeito contumaz à letra da Constituição, como se sua validade fosse seletiva ou balizada por interesses inconfessáveis, pode se enraizar no Estado e na sociedade a ponto de anestesiar os cidadãos. Para inaugurar sua gestão à frente do Supremo, o ministro pautou o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, que trata do “estado de coisas inconstitucional” instalado nos presídios Brasil afora. Pode-se (e deve-se) questionar a excentricidade da tese, mas não há como negar que nada avilta tanto os direitos e garantias fundamentais de uma Constituição dita “cidadã” do que as condições subumanas do sistema prisional brasileiro. É uma questão fundamental a ser debatida com coragem e honestidade intelectual por toda a sociedade.
Neste 35.º aniversário da carinhosamente chamada “Constituição Cidadã”, é tempo para o País celebrar seus avanços civilizatórios e, ao mesmo tempo, refletir sobre os não poucos desafios que ainda persistem. É hora de a sociedade unir esforços para fortalecer as instituições democráticas consagradas pela Carta Política da redemocratização e promover as reformas necessárias para que a Constituição seja menos disfuncional e cada vez mais forte. Só assim ela haverá de seguir como o farol mais brilhante dos direitos e do sentido de justiça para todos os brasileiros por muitos anos à frente.
Comentário nosso
Não resta dúvida de que a Constituição tem os seus defeitos e merece reparos. O pior é que o Congresso que nós temos não tem capacidade para nos dar uma Constituição melhor do que a que temos. Quem só pensa nos próprios interesses, não vai ter interesse nenhum pelo interesse dos outros. A única saída seria convocar uma Constituinte cujos participantes fossem escolhidos entre todos os cidadãos, com exceção dos ocupantes de cargos políticos de qualquer natureza. (LGLM)