De início, deve-se ter claro que é normal na democracia haver embates entre os Poderes. E, quando isso acontece, não necessariamente uma crise se instala no País. O sistema de freios e contrapesos opera por meio de um conjunto bem definido de regras objetivas, previstas no ordenamento jurídico, mas não só. O debate público entre autoridades, por mais acalorado que seja, e a disputa pelo poder de influenciar a opinião pública também são mecanismos legítimos à disposição dos representantes do Executivo, do Legislativo e do Judiciário para fazer valer suas posições e interesses. Como bem notou o cientista político Carlos Pereira em sua coluna neste jornal, publicada no dia 2 passado, esse é um “conflito virtuoso” na medida em que “não permite que nenhuma força política consiga, sozinha, ser majoritária”.
Evidentemente, esse embate será normal, até esperado, desde que travado nos exatos termos estabelecidos pela Constituição. Vale dizer, tudo pode ser objeto de debate, até mesmo os limites de atuação do STF, como o Congresso tem se dedicado a discutir. O que é inaceitável é a tentativa de interferência de um Poder no outro. Não só as instituições perdem por si sós, mas o País perde quando o STF se imiscui em questões que devem ser debatidas pela sociedade por meio de seus representantes eleitos; ou quando o Congresso se lança numa cruzada revanchista contra a Corte.
Por exemplo: no fim de setembro, um grupo de deputados apresentou à Mesa Diretora da Câmara a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 50/2023, que inclui entre as competências exclusivas do Congresso o poder de sustar, por maioria qualificada dos membros das duas Casas Legislativas, “decisão do Supremo Tribunal Federal transitada em julgado que extrapole os limites constitucionais”. O conteúdo da proposta é profundamente equivocado, como se a política fosse a instância de interpretação do direito. Não é. Numa democracia, esse papel cabe ao Judiciário.
Há outras medidas em discussão no Congresso para, de alguma maneira, limitar o campo de atuação do STF, como a PEC que institui mandato para os ministros da Corte ou a que restringe o alcance de decisões monocráticas, esta já coberta pelo próprio regimento interno do STF. À sua maneira, o presidente do STF fez bem ao recomendar prudência na discussão dessa e de outras questões. “Não vejo com simpatia (o mandato para ministros do STF), embora veja com todo respeito a vontade de discutir esse tema”, disse Luís Roberto Barroso, lembrando que o Supremo, como os outros dois Poderes, é parte legítima nesse debate e, portanto, deve ser ouvido.
Não há democracia sem um Judiciário livre e independente; e não há paz social quando o Judiciário não é visto e respeitado pelos cidadãos como a instância para a resolução pacífica de conflitos. De igual forma, não há que se falar em democracia quando o Congresso é alijado da apreciação de temas que, fundamentalmente, devem ser decididos pelos parlamentares como legítimos representantes da sociedade e da Federação.
A saída para quaisquer desses impasses, presentes ou vindouros, não é outra senão a Constituição – em particular a autocontenção dos Poderes. O STF não deve se imiscuir em temas próprios da política, temas sobre os quais cabe aos cidadãos decidirem. E o Congresso, à guisa de reação, não pode abusar de seu legítimo direito de tratar desses temas adentrando o terreno da vendeta.