O fígado como conselheiro
É certo que o sr. Milei fez provocações indignas do cargo que vai ocupar, ao convidar para a posse o antípoda de Lula, Jair Bolsonaro, que pegou o espírito da coisa e viajará a Buenos Aires com uma comitiva típica de chefe de Estado. Compreende-se, portanto, que Lula não queira dividir o mesmo ar que Bolsonaro, ainda mais num evento em que este, malgrado não ocupar mais cargo público e ter se tornado inelegível, certamente terá de Milei mais atenção que o presidente brasileiro.
Mas é justamente em situações como essa que se conhecem os verdadeiros estadistas. Se com tudo isso Lula fosse à posse, demonstraria claramente que o cargo que ocupa está a salvo de entreveros pessoais. Lula, ainda que de cara fechada, cumpriria o papel de representante do Brasil, para o qual, aliás, foi eleito, e deixaria claro que as boas relações com a Argentina independem de eventuais picuinhas entre aqueles que governam os dois países.
Sendo realmente impossível para Lula prestigiar Milei depois das afrontas do argentino (que, é sempre bom lembrar, ocorrem continuamente desde a campanha eleitoral), seria então de bom-tom que o presidente se fizesse representar pelo vice, Geraldo Alckmin, que para todos os efeitos está ali para isso mesmo. Mas não: deixando-se levar pelos conselhos do fígado, Lula decidiu mandar à posse de Milei seu chanceler, Mauro Vieira, que certamente é um respeitável ministro, mas claramente só está ali para cumprir tabela.
Diferenças ideológicas entre Brasil e Argentina já foram sabiamente sublimadas no passado, a bem de uma boa relação. Em 2015, por exemplo, a então presidente Dilma Rousseff ignorou essas diferenças e foi à posse do liberal Mauricio Macri – evento que ficou marcado pela deselegância da presidente Cristina Kirchner, aliada dos governos petistas, de se negar a passar a faixa ao sucessor.
Nesse sentido, Lula e Bolsonaro padecem do mesmo mal: consideram que as relações entre Brasil e Argentina dependem de afinidades ideológicas. Bolsonaro, recorde-se, recusou-se a comparecer à cerimônia de posse do peronista Alberto Fernández, em 2019, mandando em seu lugar o vice, Hamilton Mourão. Mas do truculento Bolsonaro não se esperava nada diferente disso; já de Lula, que venceu a eleição prometendo fazer diferente de Bolsonaro, isto é, restabelecer o respeito pelas instituições e pela democracia e restaurar a civilidade diplomática, se esperava um gesto de grandeza.
E política, como Lula sabe bem, é feita de gestos. Um aperto de mãos entre Lula e Milei, consideradas todas as circunstâncias da posse, seria uma mensagem clara de que o Brasil se importa com a Argentina e que tudo fará para desarmar os espíritos. Com Lula vendo a posse pela TV, a mensagem é outra: não é a Argentina que importa, e sim os “companheiros” peronistas que foram derrotados por Milei e sua serra elétrica.
Comentário nosso
- Concordo plenamente. (LGLM)