Não falta, contudo, quem considere que os golpistas que participaram do levante do 8 de Janeiro não eram delinquentes, mas patriotas que agora são vítimas de abuso do Judiciário. A distorção cínica do que os brasileiros todos puderam ver com seus próprios olhos ao vivo pela TV – isto é, a destruição das sedes dos Três Poderes, em flagrante ataque às instituições democráticas, na expectativa de que isso gerasse reação das Forças Armadas e a consequente instalação de um regime de exceção – se presta a um único propósito: causar confusão, que é onde viceja o autoritarismo.
Isso ficou claro no malicioso manifesto assinado por 30 senadores de oposição a propósito do evento oficial que lembrou ontem em Brasília o 8 de Janeiro. Das 80 e tantas linhas do texto, apenas 3 fazem referência aos “atos de violência e depredação dos prédios públicos”, frase em que o sujeito da ação está oculto por elipse. Daí para diante, a título de enumerar as ameaças à democracia, os sujeitos são todos nomeados: primeiro, o governo de Lula da Silva, que teria cometido “flagrante omissão” no dia 8 de janeiro – senha para insinuar que os petistas tiveram alguma participação nos atos golpistas; depois, o Supremo Tribunal Federal, que estaria violando direitos constitucionais no afã de condenar os golpistas.
O tal manifesto, em dois trechos, demanda que o País volte à “normalidade democrática” e encerra conclamando os brasileiros a viver “num ambiente de tolerância”, evitando “a perseguição a qualquer custo aos que pensam diferente”.
Chega a ser ofensivo. Esses senadores nunca pediram “normalidade democrática” quando Bolsonaro afrontou sistematicamente a democracia e suas instituições inclusive perante a comunidade internacional, quando atacou a imprensa de maneira grosseira e sistemática e quando fez campanha de descrédito do sistema eleitoral, ameaçando ignorar o resultado das urnas caso lhe fosse desfavorável. Tampouco não se recorda de alguma manifestação desses senadores desaprovando as raivosas declarações e atitudes de Bolsonaro contra opositores, absolutamente contrárias ao tal “ambiente de tolerância” que agora descaradamente dizem defender.
Ora, o País vive hoje em plena normalidade democrática. Há eleições livres. Há imprensa livre. Há funcionamento livre e autônomo de cada um dos Poderes. Certamente, há tensões, mas elas são próprias de todo regime democrático. Certamente, há decisões equivocadas da Corte constitucional – que merecem duras críticas –, mas isso é próprio de um regime democrático.
O “manifesto da oposição” ignora um fato básico da vida democrática. Estado Democrático de Direito não significa perfeição, tampouco sintonia com tudo o que cada um acredita e apoia. As divergências existem – e isso não é um defeito do regime democrático. Trata-se, antes, de cristalina manifestação de que a sociedade é, de fato, livre, não subordinada à atuação do Estado.
O 8 de Janeiro não aconteceu à toa. Foi alimentado pelo discurso bolsonarista segundo o qual a eleição de Lula foi resultado de uma grande conspiração antidemocrática que envolveu todos os Poderes, sobretudo o Judiciário, para instalar uma ditadura de esquerda contra os “patriotas”. Logo, para essa malta, “voltar à normalidade democrática” significa instalar um regime em que prevalece não a lei, mas a vontade dos bolsonaristas – recorde-se que Bolsonaro, na condição de presidente, certa vez declarou que “as leis existem, no meu entender, para proteger as maiorias” e que “as minorias têm que se adequar”. Como se viu no manifesto dos senadores de oposição, esse espírito golpista continua latente.